Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Record aborda ‘ideologia de gênero’ como doutrina, como se fosse jornalismo

Eduardo Ribeiro e Carolina Ferraz na apresentação do Domingo Espetacular / Reprodução

A Record exibiu no Domingo Espetacular, revista que mistura entretenimento e jornalismo, na noite de domingo (22), uma “reportagem” sobre o que chama de “ideologia de gênero”, termo que já denuncia uma visão unilateral sobre um assunto que justificadamente tem ocupado a pauta da educação no mundo todo, e não só no Brasil.

No momento da conclusão, a edição chamou a atenção para o fato de a educação no Brasil ocupar hoje um lugar muito ruim no ranking mundial do ensino, alegando que há outros assuntos de que se ocupar antes de pensar na discussão sobre orientação sexual (termo que em nenhum momento é usado no relato da Record). A edição, no entanto, não menciona a (falta de) importância que a educação ocupa neste governo, apoiado abertamente pela Record e pelo grupo em que ela está inserida, da Igreja Universal.

Até índice de suicídio foi mencionado entre trans, alarmismo que encontrou absoluto silêncio sobre o número, tão maior, de homicídios cometidos contra trans e homossexuais no Brasil. A narrativa foi toda construída para alertar o telespectador que o simples fato de ele se questionar sexualmente já aponta para grandes riscos, sem fazer qualquer menção ao mal que a opressão ao respeito pela orientação sexual já causou a tanta gente.

Foram ouvidos apenas entrevistados que corroborassem com a tese de que “tudo tem hora” e crianças não devem ter suas cabecinhas confundidas com dilemas sobre ser menino ou ser menina a essa altura da vida.

A questão é muito mais ampla do que faz parecer o Domingo Espetacular, que por ter mostrado apenas um lado do assunto, pode ser tratada como doutrina, nunca como jornalismo. Transformar o debate em uma questão ideológica já é um equívoco sem tamanho, obra de quem não consegue enxergar a coisa com o mínimo de distanciamento da religião.

A abordagem caberia melhor no Fala Que Eu Te Escuto ou no sermão de algum dos bispos/pastores da Igreja Universal, que ocupa a madrugada toda da emissora, mas não em um programa dito jornalístico, tratado como verdade absoluta, sem dar espaço ao contraditório, e que se gaba de sua boa audiência.

Segundo a edição, a “ideologia de gênero nas escolas” tampouco é bem vista na Inglaterra ou nos Estados Unidos, e a evidência foi mostrada por meio de um casal resistente a falar de sexo com o filho e de um trans que diz ter enfrentado problemas físicos após a operação de mudança de sexo, dramas sobre os quais ninguém lhe avisou, afirmou.

Ora, ora, Record: quantos casos bem-sucedidos existem de pessoas que já se submeteram à troca de sexo? Por que silenciar quanto a isso? Quantas pessoas também já não se mataram (e foram mortas) devido a esta opressão que endossa o tabu de se falar de sexo desde cedo, formando indivíduos inseguros sobre o assunto?

Só para pegar um exemplo bastante inofensivo, quantos homens não sofreram, por gerações e gerações, porque lhes diziam, desde pequenos, que “homem não chora”? Isso, pelo olhar de quem censura a discussão na infância, também deveria ser tratado como “ideologia de gênero”.

É preciso entender o que a Record compreende sobre o que chama de “ideologia de gênero”, termo que cientificamente não existe, e perguntar: onde estão as vozes contraditórias ao que foi exibido, que o jornalismo da casa não pode ouvir? Segundo a repórter, o princípio da “ideologia de gênero” seria crer que “ninguém nasce homem ou mulher”, mas a edição se ocupa de abordagens que não endossam tal princípio.

Também por esta interpretação feita pela emissora, o mais correto seria falar em “identidade”, não em “ideologia” de gênero.

Há uma semana, Augusto Nunes, colunista da casa, já prenunciava a preocupação da emissora com o assunto, ao falar sobre o aval, na Escócia, para que crianças “mudem de gênero” a partir dos 4 anos, sem o consentimento dos pais e com o apoio dos professores. Na verdade, não é que as crianças vão “mudar” de gênero.

O que as diretrizes ditam agora naquele país é que as crianças devem ter respeitadas as suas manifestações de usar outro banheiro ou outras roupas que não aquelas pré-determinadas para meninos e meninas. Seria, a princípio, a contramão da tal premissa que pede que meninos só vistam azul e meninas vistam rosa.

Podemos rediscutir o que vem sendo aplicado na Escócia, mas a tese da ministra Damares tampouco se mostra confiável para uma educação adequada. Pena que a Record não esteja interessada em escancarar a rejeição ao outro lado, praticando, vale repetir, o que se chama de jornalismo.

 

 

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Cristina Padiglione

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