Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Se Jesus não voltar, a culpa não será do Porta dos Fundos: Natal 2020 ridiculariza a intolerância

Gregório Duvivier apresenta o 'Jerusalém Alerta', um precursor dos programas sensacionalistas de TV, que há de corroborar o esculacho sobre Cristo crucificado / Daniel Chiacos/Divulgaçãio

“Teocracia em Vertigem” chega ao YouTube nesta quinta-feia (10), aberto a todos, uma diferença essencial em relação às duas últimas edições especiais de Natal do Porta dos Fundos, exibidas pela Netflix.

O filme da vez, como explicita o título, é uma referência a “Democracia em Vertigem”, documentário finalista ao Oscar deste ano, que se concentra no período compreendido entre o processo de impeachment de Dilma Rousseff (2016) e a gestão Jair Bolsonaro. A diretora do documentário, Petra Costa, é uma das várias vozes em participações especiais do média-metragem, que soma 51 minutos de duração, com roteiro de Fábio Porchat e direção de Rodrigo Van Der Put.

Da mesma forma, o filme é recheado de frases e referências sobre esse trecho da história do país, com toda a polarização desenhada de lá para cá. Há frases rigorosamente iguais às do noticiário e até um power point homenageando Deltan Dalagnol naquele famoso desenho onde o nome de Lula aparecia no centro de várias flechinhas que tratavam sobre as “convicções” lançadas na ocasião, no lugar de provas dignas de condenarem o ex-presidente.

O filme não trata Jesus como Lula nem como Bolsonaro, mas reúne repertório composto por ambos na vida real. Pende para a crítica à direita, claro, e a própria referência a “Democracia em Vertigem” aponta para isso, já que este é um governo de direita, como lembra Tabet, e o humor deve ser oposição.

“E é fácil fazer humor com esse governo”, lembra Porchat ao longo de uma entrevista dada pela trupe na manhã desta quarta-feira (9) via zoom.

Nesse contexto que leva repertório político contemporâneo ao processo de crucificação de Cristo, são muitas as referências que fazem do especial um roteiro capaz de rir sobretudo da intolerância, algo que transformou o grupo em alvo de censura e de ataque terrorista no final de 2019, quando três bombas foram jogadas na sede do grupo, no Rio. Mas é preciso estar atento a uma infinidade de sutilezas para tirar melhor proveito de cada piada e das críticas embutidas nos deboches.

Não é um programa para ser visto com gente interrompendo a atenção do espectador, que poderá perder boas sacadas entre uma linha e outra. Não é humor popular “Praça é Nossa”, cujas claques avisam quando a plateia deve rir, mas é perfeitamente acessível para todo e qualquer cidadão que no mínimo tenha acompanhado as manchetes de jornais nos últimos quatro anos.

No papel de um auxiliar de Pôncio Pilatos, Antonio Tabet carrega um ranço de Peçanha, o policial que tem divertido o público em esquetes na pandemia. Mas há outras referências ali.

“Ele é uma mistura de [Sergio] Moro com ascendência em [Deltan] Dalagnol) ou Dalagnol com lua em Moro, ele é aquele braço direito do Pilatos e exibe todas as convicções que, pra ele, correspondem a provas. Todo lado que serve pra acusar Jesus é válido, e ele é aquele tipo de cara que fala com aquela vozinha mais puxada, sempre tirando o corpo fora.Ele acusa, mas não quer se comprometer muito. A inspiração é o cara que dobra a roupa antes de transar”, brinca Tabet, o Kibe.

No especial de Natal vencedor do Emmy Internacional de comédia de 2019, “Se Beber não Ceie”, Tabet lembra que “Jesus era um escroto e não houve nenhum tipo de repercussão”. “Mas quando Jesus, no último especial, trazia uma insinuação de relacionamento homoafetivo, aconteceu o que aconteceu, teve deputado indo pra Câmara dizendo que não admitia que xingassem Jesus de gay. Eu acho que esse especial tende a não ter uma repercussão tão grande nesse sentido ‘explosivo’ porque ele é mais político e acho que o cidadão de bem da tradicional família cristã brasileira é mais tolerante com politica do que  com valores que ele julga certo ou errado.”

Tabet vai adiante, mencionando escândalos de corrupção: “Isso tudo é permitido, mas um homem se relacionar com outro homem ainda é um tabu nesse país que ao mesmo tempo é o pais do carnaval e no qual o ministro da Justiça e da Segurança Pública finge que não aconteceu um atentado terrorista”.

No papel de um apresentador de TV de programa sensacionalista, Gregório Duvivier faz rir com uma caricatura da caricatura representada por um mix de referências da vida real. “Não é um apresentador específico, e todo lugar tem um representante dessa categoria, tem em São Paulo, no Rio, e se você for ao Amapá também vai ter um local. É algo muito democrático”, comenta Greg, que recebe Maria (Evelyn de Castro) em seu programa e, insensível à dor da mãe que acaba de ver o filho crucificado, tenta explorar o caráter de Jesus para ter merecido tal condenação. “Boa coisa não era”, diz o personagem.

Porchat conta que essa passagem foi retirada de um episódio real do Cidade Alerta, da Record, quando o programa acusou um homem, já morto, de ter cometido atrocidades, ao que a filha dele pediu: “por favor, respeitem o meu pai”.

Para escrever o especial da vez, Porchat fez mais que a lição de casa: leu o Novo Testamento de cabo a rabo, e chegou a se entusiasmar no roteiro original, que fazia muitas referências precisas ao livro sagrado. Depois, notou que poucas pessoas têm noção clara sobre quem foi quem na novela daquele enredo, e enxugou a precisão biográfica dos personagens.

Como costuma fazer com seus roteiros, levou a obra para a apreciação de quem poderia se ofender, no caso, religiosos, e garante que teve o aval de todos, recebendo de alguns até boas piadas.

Antes de passar a palavra integralmente a eles com uma seleção de frases sobre as motivações que causaram tanta controvérsia no ano passado, vale contar que o formato de documentário foi um meio encontrado para driblar as restrições impostas a produções audiovisuais pela pandemia. O diretor falou que usou um único figurante para todas as cenas, e avisa que são de Porchat as mãos que massageiam Pilatos em uma das cenas. “Eu fiz questão”, brinda Porchat.

São truques de edição de imagens de arquivo as sequências com multidões, como a que abre o filme e mostra uma simulação da votação do impeachment (e ali, não há como fugir do fato de que Dilma representaria Jesus, já que as frases foram retiradas daquele processo de votação do Congresso em que o então deputado Jair Bolsonaro homenageou publicamente o mais famoso torturador brasileiro).

O encerramento do filme traz um videoclipe com Jesus, de novo vivido por Porchat, e as cantoras Teresa Cristina e Silvia Marchete, em ritmo de rap. O clima é tão psicodélico que é preciso estar atento para notar que a edição embutiu imagens do próprio ataque protagonizado por integralistas à sede do Porta. “Eu não vou voltar”, avisa ele no refrão, contando que já voltou como mulher, como preto e como trans, tendo sido assassinado em todas as ocasiões.

Frases

“As pessoas ficaram chateadas, mas o Cristo do ano passado derrota o mal, é até conservador”
Fábio Porchat

“Dou os meus roteiros para outras pessoas lerem. Quando fiz ‘Viral’, sobre Aids, dei para infectologistas lerem. Dei ‘Homens’, série do Comedy Central, para mulheres lerem. Agora, com o especial, eu dei pra alguns pastores lerem, pra ouvir a opinião deles, eles deram áudios de piadas, algumas eu usei inclusive. Alguns disseram que eu fazia uma leitura muito rigorosa da Bíblia.”
(idem)

“No ano passado, a gente não se ligou que os reacionários rejeitariam o especial”
(idem)

“O negócio, no fim das contas, foi a homofobia, isso diz muito mais sobre as pessoas que se revoltaram do que sobre o especial”
Antonio Tabet

“Eu tenho certeza que jogaram três bombas na sede do Porta porque Jesus era gay. E a gente só tá vivo porque ele não era gay e preto, senão teriam sido seis bombas.”
(idem)

“Mais que provocar reflexão, a ideia é sempre provocar risada. As pessoas normalmente veem  como coisas conflitantes -ou é sério ou é piada. A piada homofóbica, racista, é uma piada que sobretudo não tem graça. A gente não faz esse tipo de piada porque, antes de mais anda, não tem graça. A pergunta que a getne se faz é se o grupo de quem a gente está rindo tem poder de rir de volta. Quando a gente bate, em geral, é pra cima. Mais do que filosofia, é rir com graça, é bater pra cima, é ouvir ‘ah, eu não acredito que ele tem coragem de fazer isso’. O Borat, por exemplo, que é um cara que eu adoro, faz isso. Os Cassetas diziam que fazer humor é passar a mão na bunda do guarda, e é bem isso.”
Gregório Duvivier

“De modo geral, a gente não quer que as pessoas olhem e falem: ‘nossa, tá imitando o Lula’, ‘tá fazendo o Crivella, eu não quis personificar ninguém, ninguém representa 100% alguém”
Porchat

“Tem referência do Power Point contra o Lula, mas tem também Maria dizendo que o “Messias cresceu e virou mito”. Evidentemente, são mais crticas à direita porque a gente tá vivendo um governo em que o humor precisa se colocar como oposição.”
Tabet

“A gente replicou o texto do nosso secretário de Cultura, Mario Frias, aquele em que ele fala sobre o [Marcelo] Adnet. Ele diz que se [as piadas de Adnet] fossem ditas ‘onde ele nasceu, ele não durava um minuto’. Isso bate na gente. Quando eu falei esse texto eu pensei: ‘caramba, é o secretário de cultura do Brasil chamando um artista pra porrada. Eu gostaria de ver o Mario Frias, gostaria eu de ter recebido essa bravata, eu iria até o lugar onde ele nasceu. Fica aí o recado pro Mario Frias, eu adoraria conhecer o lugar onde ele nasceu”
João Vicente de Castro

“Na Santa Ceia, Jesus fala que Judas o traiu e o pessoal continua comendo pão. Se fosse na minha casa, sairia porrada. Jesus era mesmo um cara muito pacífico, jamais jogaria bomba em ninguém, defendia prostitutas, adúlteras, não multiplicou os pães de Pilatos.”
Porchat

“Nem [Karl] Marx falou que era mais difícil um rico ir no reino de Deus do que um camelo passar pelo buraco de uma agulha”
Duvivier

“A gente [humoristas] se uniu mais depois do que aconteceu no ano passado [atentado ao Porta]. Todo mundo se deu os braços. Tem Helio De la Pena [no especial, que conta ainda com os meninos do Choque de Cultura: Caíto Manier, Daniel Furlan, Raul Cahequer], muita gente se juntando, como quem diz ‘a gente tá aqui de braço dado, tamo junto’. Achei bem poderoso.”
Porchat

“Não faz muito tempo, o Paulo Silvino falava ‘isso é uma bichona’. A getne acha que faz 20 anos, não faz, faz só cinco. A homofobia é uma realidade. Dito isso, a gente ainda tá debaixo de um governo que hoje zerou a importação [de taxas] das armas, é um governo que glorifica a violência, exalta a violência, e a partir disso, ainda tem a impunidade. Estamos hoje há 1001 dias sem saber quem matou Marielle e ninguém foi preso pelo atentado ao Porta dos Fundo um ano depois. A polícia diz que ‘esses caras são amadores’, e aí ninguém foi preso, tem um cara que foi encontrado na Rússia e os outros quatro estão aí, ninguém sabe quem são”
Tabet

“Apesar da impunidade, não terminou bem pros caras que cometeram esse crime. O especial deste ano não esbarra em questões sexuais ou morais, é mais uma critica política, e o governo que exalta a violência não está nos seus melhores dias, a popularidade dele não está no mesmo nível da época do atentado”
Tabet

“Não há questões que a gente não possa abordar no humor. Quando eu trabalhei na Globo, não podia falar de religião, de sexo nem de marca. E uma das funções do humor é tirar o véu das proibições e mostrar tudo, tudo o que não poderia ser abordado é exatamente lá que a gente vai com mais sede, não pra chocar, mas pra fazer rir, tem um pouco a ver com o jornalismo, no sentido de que jornalismo é tudo aquilo que alguém não quer ver publicado”
Duvivier

“Engraçado você dizer que na Globo não podia falar disso ou daquilo. Na Record eu podia falar de tudo”
Porchat – contém ironia.

“A gente não atira pra matar, como dizia o Millôr [Fernandes], ‘o humor não atira pra matar’. Os maiores ataques são feitos por religiosos, mas a gente nunca chutou uma santa, quem fez isso foi um pastor da Record, inclusive. A gente nunca destruiu terreiro de candomblé, umbanda, tem gente que passa o dia agredindo religião, como o Feliciano, que disse que ‘a mulher católica usa Jesus no peito, na correntinha’, sendo muito desrespeitosa. É um cristão falando de outro. Os ataques mais agressivos são perpetrados por religiosos, a gente nunca fez nada disso. Os ‘ataques’ do Porta, com muitas aspas, são uma ode de amor, é uma relação muito afetiva mesmo coma  a vida de Jesus, e quando a gente bate, a gente não bate em Jesus ou no religioso, mas no poder instituído. Quem mais se ofende são pessoas que vivem de gerar e criar escândalos e institucionalizam a religião como poder.”
Duvivier

“As pessoas falam: ‘ah, por que só com evangélico e católico?’ O Porta brinca com todos os assuntos, brinca com muçulmano, ateu, com espírita, católico, e muita gente também quer terceirizar a violência, perguntando ‘Por que não brinca com Maomé?’.  Ela terceiriza a violência, ela quer que alguém faça isso por ela.”
Porchat

“O Porta catalogou os nomes de todos os internautas que mandaram essas perguntas e sugestões, como  ‘faz lá o Alá, Maomé’ e a gente vai mandar essa lista de nomes lá pro Jihad pra eles verem quem quer que fazer piadas com eles”
Tabet

“Sugerir fazer humor com Maomé é pior do que fazer”
Duvivier

“Eu já fiz um muçulmano terrorista fundamentalista gay. A pessoa diz que a gente não faz piada com o Alcorão. Aí eu pergunto: ‘você quer que eu faça piada com o Alcorão? Fala aí três passagens do Alcorão’. Ninguém sabe. Ninguém conhece. E a gente faz piada com as referências, não sobre o que é desconhecido aqui.”
Porchat

“Em dois casos em que a gente suspendeu esquete, o da gordofobia e esse recente, a gente estava propagando preconceito mesmo que indiretamente e o Porta não quer propagar preconceito, não quer machucar, não quer atirar pra matar. Quando a gente faz piada com religião, a gente não tá propagando ódio, violência nem pedindo pra deixarem de acreditar no que acreditam. No caso da gordofobia, o vídeo acabou propagando preconceito de alguma forma, e no caso desse da vereadora, era um personagem do Joel que já existia há 10 anos e acabou atingindo a vereadora, foi um descuido nosso e essa recepção atrapalhou o objetivo, que era fazer rir. O Porta dos fundos faz parte da sociedade e nós também às vezes erramos.”
Porchat

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Cristina Padiglione

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