Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Documentário revisita Brasil registrado por Glauber Rocha na TV Tupi. E ganha vaga em Cannes

Glauber Rocha à frente do programa Abertura / Divulgação

“Abertura”, programa de TV que Glauber Rocha apresentou por pouco mais de um ano, entre 1979 e 80, no último respiro de vida da TV Tupi, teve seu material resgatado pela filha do cineasta, a documentarista, produtora e diretora Paloma Rocha, e pelo também documentarista, diretor de fotografia e diretor Luís Abramo. Ambos assinam a direção de “Antena da Raça”, documentário de 80 minutos de duração que promove um diálogo entre o conteúdo original e o Brasil de 2018, dando voz a figuras anônimas ou não, como fez Glauber há 40 anos.

Tem-se daí um retrato da evolução (ou involução) do país em quase quatro décadas.

“Antena da Raça” integra a seleta lista de sete documentários da edição de 2020 da Mostra Cannes Classics, evento paralelo ao Festival de Cannes. Por causa da pandemia, os filmes serão apresentados no Festival Lumière, em Lyon, entre 10 e 18 de outubro, e no Réncontres Cinématographiques de Cannes, entre 23 e 26 de novembro.

“O filme não é sobre o programa, é a partir dele”, conta Abramo. “A gente queria se apropriar desse material e fazer uma investigação. O programa parte do início do período da redemocratização, o Glauber propõe muito isso: a possibilidade de existir um grande acerto para o Brasil que estava renascendo. E a gente resolveu sair pelo Brasil e checar o que está acontecendo nesses 40 anos. Pegamos a época da eleição, em 2018. Como o Glauber tem uma linguagem muito na rua no programa, conversa muito na rua ou sem estúdio, com entrevistas rompendo com a estética da televisão da época, agente partiu para essa mesma concepção no documentário.”

Abramo e Paloma levam a cabo aí o tal lema ostentado por tanta gente, mas raramente alcançado, de ter uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. A partir dos personagens, a dupla tentou fazer um contraplano às conversas registradas por Glauber, selecionando personagens atuais que poderiam traçar uma conexão com os personagens dos filmes do cineasta, a fim de atualizar esses perfis.

“Os personagens de Glauber são atemporais, permitindo fazer esse paralelo com a atualidade”, lembra Paloma.

Isso inclui visitas à comunidade de Cidade de Deus, no Rio, ouvindo conversas locais sobre política, e a assentamento do MST, o Movimento Sem Terra, figuras equivalentes a alguns retratos vistos, por exemplo, em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.

Uma das tantas mães que teve seu filho assassinado por bala dita “perdida”, mas cuja procedência bem conhecemos, na comunidade da Maré, no Rio, também é ouvida no filme. Entre os entrevistados conhecidos, Caetano Veloso e Luiz Carlos Barreto, visitados em 79/80 pela lente de Glauber, são revisitados agora.

Se há quase 40 anos Barretão falava sobre a fome e o sertão, agora ele se debruça sobre o alijamento dos governos de esquerda na América Latina. Caetano, por sua vez, foi ouvido pela câmera de Glauber justamente quando acabava de voltar ao país, após o exílio em Londres. O encontro se deu em uma festa daqueles dias que eram de celebração, mas ainda tensos. “Na época ele fala muito da entrada do novo governo, da possibilidade de novos tempos. Agora, fala sobre Glauber, de sua importância, da visão geopolítica dele e de sua importância para a cultura”, segue Abramo.

Pergunto a ele se não é melancólico perceber uma possível involução entre 1980 e o Brasil atual, até porque aquele foi um período de grandes esperanças nascendo. “Acho que a esperança fica nas falas do Glauber”, responde. “Ele propõe um grande acerto no país, questiona por que a elite precisa ser tão cruel, por que não cede um pouco, no programa ele fala muito sobre as reformas estruturais.”

Já o diretor de teatro Zé Celso foi entrevistado por Paloma e Abramo dias após o resultado que deu vitória a Jair Bolsonaro nas urnas.

“O filme é, na verdade, uma homenagem aos artistas que se dedicam aos ideais.” Torçamos para que inspirem a plateia.

“A gente está muito feliz de fazer esse filme e de trazer tudo aquilo para o momento atual, de fazer essa reflexão. Tanto eu como a Paloma somos frutos disso, de uma geração de cineastas que enfrentou a ditadura e faleceu muito jovem, com muita angústia”, diz ele, Abramo, filho de Fernando Campos. “A gente juntou essa angústia e foi pra rua.”

A missão que os levou a campo acabou encontrando um atalho tão robusto que rendeu outro filme. No encontro com tribos guajajaras, e em visita à reserva Arariboia, no Maranhão, onde foram investigar como se dá a relação entre esse povo e as urnas, os dois acabaram registrando um material mais amplo, com os guardiões da floresta, e resolveram daí produzir “Tentehar – Arquitetura do Sensível”, outro documentário, em versão longa-metragem.

“Nesse, a gente já mostra os bolsonaristas, a marcha do MST, a vigília por Lula, a gente começou a conversar com a classe política e a se  aprofundar mais”, conta Abramo. É quase um spin-off glauberiano, com perdão pelo anglicismo.

“Antena da Raça” tem coprodução da Cine Brasil TV e foi feito com auxílio do Fundo Setorial de Audiovisual. Ainda não há data de exibição definida no Brasil.

Abaixo, uma mostra do programa Abertura:

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Cristina Padiglione

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