Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Silvio de Abreu fala pela 1ª vez sobre censura da Globo em temáticas gays

O dramaturgo Silvio de Abreu conversa com o jornalista Tony Goes / Reprodução Manual do Tempo / YouTube

A Globo tem amplificado como nenhum outro canal de TV no Brasil a disposição em dar voz a cores e gêneros diversos, amém. Mas nem sempre foi assim. Nos anos 1980, 1990, a censura interna sobre temáticas meramente homossexuais era fato, segundo revelações inéditas feitas pelo dramaturgo Silvio de Abreu a Tony Goes, colunista da Folha de S.Paulo, pelo canal Manual do Tempo, via YouTube, na segunda-feira (29), dia do Orgulho LGBTQIA+.

Fora da Globo desde março, Abreu escreveu várias novelas e minisséries para a Globo, onde ocupou, de 2014 a março passado, a direção de teledramaturgia da emissora. Na entrevista a Goes, ele admitiu pela primeira vez que a morte do casal de lésbicas na novela “Torre de Babel” (1998/99) foi consequência de um veto imposto pela diretoria da Globo na época à temática abordada pelo par formado por Christiane Torloni e Silvia Pfeifer no enredo.

Embora muito se atribuísse a morte das personagens à rejeição do público, foi a imposição da direção da empresa que determinou o desfecho encontrado pelo dramaturgo, que conta que chegou a pedir demissão na época.

Silvia Pfeifer e Christiane Torloni em ‘Torre de Babel’ / Divulgação

Ele revelou ainda outros casos de interferência da direção da empresa em temáticas sexuais que fugissem da conceitual ‘família brasileira’.

O autor contou que teve cena cortada pela direção da casa no final de “Deus nos Acuda”, referendada inclusive por um clássico do cinema, “Quanto Mais Quente Melhor” (1959), e revela que escreveu dez episódios da série “Boca do Lixo”, mas teve apenas oito gravados, também por restrições ao debate de gênero.

Ao citar a rejeição da audiência ao casal de lésbicas de “Babilônia”, de Gilberto Braga, Ricardo Linhares e João Ximenes Braga, lembrou que o problema enfrentado na ocasião foi parecido com a recusa que ele também teve das personagens de Torloni e Pfeifer em “Torre de Babel”: a condição homossexual foi apresentada ao público antes que aquelas personagens tivessem a chance de cativar a audiência por outros fatores, como aconteceu com Sandrinho (André Gonçalves) e Jeferson (Lui Mendes) em “A Próxima Vítima” (1995).

Goes lembra também do beijo gay cortado de “América” (2005), de Glória Perez, entre Bruno Gagliasso e Erom Cordeiro, e avanço em 2013, com “Amor à Vida”, quando finalmente o primeiro beijo gay em novela foi ao ar, entre Mateus Solano e Thiago Fragoso.

Abreu cita que além da competência de Walcyr Carrasco em preparar a história para que o público torcesse por aquele par, Félix também era adorado pela audiência e o diretor-geral da época, Carlos Henrique Schroder, bancou esse “passo à frente”.

“Ele [Carrasco] fez com categoria o último capítulo, uma beleza. Você vê que aquilo é sobre aceitamento, não é sobre sexo, é acolhimento”, diz o autor.

O dramaturgo fala ainda da família de classe média de negros “normal” que inseriu em “A Próxima Vítima”, ocupando um espaço até então inédito nas novelas brasileiras. Confira os principais trechos da conversa, mas, aos amantes de novelas, recomendo que assistam à entrevista completa no canal Manual do Tempo, que vale ainda como uma aula para roteiristas e fãs de dramaturgia.

CENSURA INTERNA

“Esse assunto, LGBT dentro da Globo nos anos 70, nos anos 80, não vou dizer que era proibido, mas toda vez que você apresentava um personagem ou uma trama ligada a isso sempre tinha restrições: ‘não pode fazer isso, não pode fazer aquilo’, tinha uma censura interna muito grande em relação a isso. A primeira vez que eu fiz um personagem LGBT foi numa série que ia ao ar às 11 da noite, ‘Boca do Lixo’, que era história de um homossexual (Reginaldo Faria) que saiu de casa por ser homossexual, foi morar no exterior, mas o pai dele morre e ele tem que voltar.”

“O fato dele ser homossexual dentro da história é dramaticamente muito eficiente. Tinha muitos diálogos especificamente sobre o mundo homossexual que eu não conhecia. Embora eu tivesse muitos amigos gays e tivesse feito muita pesquisa, pedi pro Gilberto Braga me ajudar e ele escreveu uma cena que pra mim foi muito importante porque colocou a problemática homossexual muito clara pra mim.”

“Eu escrevi dez episódios, foram ao ar oito. Muita coisa do mundo homossexual foi cortada, antes mesmo de ser gravada. Quando a história começava apresentar o personagem dele, apresentava muito do mundo homossexual, mas isso não teve na minissérie, só ficou a problemática, que interessaria à história, mas um mergulho mais profundo nesse mundo que eu queria fazer, eu não pude fazer.”

CENSURA FEDERAL

“A gente conviveu com a Censura até 86, tanto na pornochanchada como nas novelas. Em novela, por exemplo, não podia fazer adultério. Eu tive uma reunião com a doutora Solange, [famosa funcionária do departamento de Censura]: ‘como é que eu vou fazer drama sem adultério?'”

DRIBLANDO RESTRIÇÕES

“Quando eu voltei a escrever sobre esse assunto foi na ‘Próxima Vítima’, já em 1995. Mas aí, mesmo dentro da TV Globo, quando você apresentava o assunto, tinha sempre restrição. Quando apresentei a sinopse da ‘Próxima Vítima’, este assunto foi vetado. Aí eu tive uma reunião muito longa com o Boni [José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, então vice-presidente de operações da Globo] onde eu expliquei como eu queria desenvolver aquilo.

Eu não estava fazendo aquela história simplesmente pra escandalizar ou pra usar a homossexualidade. O que me interessava ali era falar do homossexual, porque eu tenho muitos amigos que por serem homossexuais, abandonaram a família, foram pra outros lugares e se deram muito mal na vida porque eles não tinham o apoio dentro de casa.

Então, eu achei que se eu fizesse uma história onde você explicasse pra família que o fato de a pessoa ser homossexual ou deixasse de ser homossexual não diminui em nada o seu caráter e a sua qualidade de ser humano, é uma condição normal de vida, era isso que eu queria passar para o público. Daí porque eu peguei dois adolescentes, que viviam junto da família, que eram personagens muito queridos pelo público.

Eu usei um truque para que o preconceito não viesse na frente das qualidades que eles poderiam ou não ter. Eu primeiro comecei a mostrar os personagens como sendo bons amigos, boas pessoas, bom caráter, bons filhos, então,o povo gostava muito deles. E lá pelo capítulo 100 da novela eu revelei que eles eram homossexuais. O público, como já gostava deles, recebeu eles muito bem. Foi como se eu dissesse:’ah, esqueci de contar uma coisa pra vocês: eles são gays’. E tudo bem, porque as pessoas já gostavam deles”.

RACISMO

“Esse foi um truque, da mesma maneira que eu usei o truque para a família dos negros na ‘Próxima Vítima’. Esse também foi outro problema que eu tive que enfrentar: ‘será que o público vai gostar?’ [cita, como uma questão que a televisão, de modo geral, fazia na época]. Claro que vai gostar, tem um mundo de famílias negras. Não é que dissessem que não podia fazer, mas ninguém tinha feito uma família de negros que fosse uma família ‘normal’, como é, e que não entrasse na novela só pra ficar discutindo o preconceito, eu não queria isso.

Eu queria uma família que entrasse naturalmente dentro da história, que fizesse parte da sociedade como uma família de negros faz parte da sociedade. Essa foi a novidade. Então, quando eu construí a história, todas as famílias da ‘Próxima Vítima’ são quebradas, você não tem nenhuma família que seja ‘direitinha’. A mocinha, que é a protagonista, Ana (Susana Vieira), ela é amante do protagonista (José Wilker), ela não é casada com ele. A melhor amiga dela é uma prostituta, os outros personagens da novela também não têm uma família que tenha pai e mãe, aquela família que seja idealizada pela classe média, que o público gosta de se identificar.

A única família que era assim era a família dos negros. Então tinha a Zezé Motta, que queria trabalhar fora, o marido (Antônio Pitanga) era contra, ela vai lá, briga com o marido, e consegue, e vai trabalhar. O marido é um contador que trabalha, sustenta a família, o filho é um gerente de banco, é uma família totalmente normal. E quando a gente fez a primeira pesquisa da novela sobre quais eram os personagens prediletos do público, a família da Zezé Motta e do Pitanga era a família mais querida do público porque era a família com que eles se identificavam realmente.

Voltando aos gays, eu também coloquei um adolescente negro e um branco. Isso também foi proposital: [eu disse] ‘Quero ver agora qual preconceito vai ficar na frente, o do negro ou do homossexual? Qual vai ser mais debatido?’. E foi muito bem aceito, não houve nenhuma rejeição, nem por ele ser negro nem por ele ser homossexual.

E o que mais me interessava nessa história é que no momento em que ele ser revelasse homossexual pra família, que a família o aceitasse. A cena em que eu faço o Sandrinho se revelar pra mãe, que ele é homossexual, e ele explica que ele é homossexual, ele explica o que ele sente, ele explica a incapacidade de ser qualquer outra coisa porque ele nasceu sendo assim. Aí, na família dos negros, teve o irmão mais machão que era contra, mas a mãe aceitou, e o irmão mais machão, no fim, aceitou que o irmão tinha o direito de ser como era.”

“Quando o Sandrinho explica pra mãe que ele é homossexual, esta cena foi uma cena que eu demorei muito pra escrever. Eu queria que isso calasse fundo dentro das pessoas, que entendessem direito essa situação, e fui muito feliz porque naquela época a gente recebia cartas, e o número de cartas e telefonemas que eu recebi agradecendo a isso, inclusive recebi flores, fiquei muito comovido com uma senhora que me falou assim: o pai, ao descobrir que o filho era homossexual, ficou 20 anos sem falar com o filho, e quando ele viu aquela cena, ele entendeu. Fiquei muito emocionado.”

‘PEDI DEMISSÃO’

“Quando eu fui fazer ‘Torre de Babel’, como aquele casal gay da ‘Próxima Vítima’ tinha sido aceito, eu achava que podia fazer outro casal. A ideia que eu tinha era a seguinte: existe um casal homossexual, Silvia Pfeifer com Christiane Torloni, e um casal heterossexual, do Tarcísio Meira e Glória Menezes. Num determinado ponto da história, o personagem da Silvia Pfeifer vai morrer, quando explodir o shopping.

Essa história que eu inventei a explosão do shopping porque a novela ia mal de audiência, isso é mentira. A novela, desde o começo era a história de um homem (Clementino/Tony Ramos) que queria explodir um shopping, desiste, alguém explode e a culpa cai nas costas dele.

Nesta explosão de shopping, a Christiane Torloni morreria porque ela era uma mulher rica, o dinheiro dela ficaria com o Tony Ramos e ficaria a Silvia Pfeifer sozinha. No outro lado da história, Tarcísio Meira largaria Glória Menezes, ia ficar com Natália do Valle, e Silvia Pfeifer e Glória Menezes começariam a conviver, mas por amizade. O que eu queria mostrar aí? O direito de uma pessoa homossexual ter uma amizade com uma heterossexual e de um heterossexual ter amizade com uma homossexual. Aí, novela. [Pensei] Vou começar a contar essa história. Caso isso evolua bem, eu posso futuramente fazer com que elas tenham um romance, mas eu não tinha planejado esse romance na sinopse. Mas, como autor de novela, eu sei que quando a coisa evolui, a gente pode ir pra qualquer lugar.

Mas quando a novela estreou, começou uma campanha contra a novela, principalmente das duas lésbicas. Porque diferentemente da ‘Próxima Vítima’, em que eu coloquei o personagem primeiro para o público gostar, dessa vez, desde a primeira cena você já sabia que eram um casal. Isso provocou uma grande revolta, não só pela homossexualidade, mas também por causa da violência que ela tinha.

E por quê? Porque essa novela foi uma encomenda do Boni pra mim, para fazer uma novela que mexesse com a sociedade, ele ia me deixar contar essa história, ele ia me dar um respaldo para eu poder desenvolver o que eu quisesse, desde que fossem assuntos relevantes dentro da novela. E eu apresentei a sinopse pra ele, com toda a violência que a novela continha, com todos os problemas sociais que a novela continha, e ele aprovou. E eu comecei a fazer.

Um mês antes da novela estrear, o Boni saiu da TV Globo e entrou uma nova diretoria [capitaneada por Marluce Dias da Silva]. Essa nova diretoria não queria essa novela, ela queria uma novela do Manoel Carlos, uma novela ensolarada… Me chamou pra eu mudar a novela. Eu disse: ‘A novela já está gravando. Eu já tenho a novela com 30 capítulos escritos, eu não vou jogar fora essa novela e fazer outra. Você chama outro autor. Se outro autor quiser fazer, ele vem aqui e faz’.

Mas nenhum autor quis pegar esse pepino, claro, quem vai escrever uma novela em 30 dias? A novela já estava gravando, a gente grava com dois meses de antecedência. Quando viram que não tinha saída,  qual foi o método que a diretoria achou de fazer? Cortar as cenas. Então, a história da novela começou a ficar sem pé nem cabeça, porque cada vez que aparecia uma cena das lésbicas ou cena de violência maior, cortavam, e a história começou a ficar sem sentido.

Eu pedi demissão, foi uma brigaiada, aí o elenco pediu pra eu não sair, voltei atrás, continuei escrevendo e tive que dar um jeito na história. O que me foi proibido veementemente era continuar a história das lésbicas. Então, a história que eu queria fazer, da Silvia Pfeifer com a Glória Menezes, não vai dar pra fazer. Não podia juntar ela como amiga da Glória, é como se ela tivesse tido um carimbo, ninguém podia chegar perto. Essa era a situação.

O que eu tenho na minha história? Eu tenho um shopping que vai explodir, então eu vou explodir esse casal junto, porque separar esse casal eu não vou. Negar a condição sexual delas eu não vou , deixar um personagem na novela sem função também não vou. Então, a melhor solução era terminar com as duas juntas, porque juntas elas preservam uma ideia, elas ficaram juntas até o fim, e eu não traí minha ideia principal, embora eu tenha abandonado parte da minha história.”

CORTA!

“Quando eu fiz ‘Deus nos Acuda’, tinha um personagem que não era gay [Jandir Ferrari], mas se travestia de mulher, ele estava fugindo de bandidos. Era um pouco em cima de ‘Quanto Mais Quente Melhor’. No fim da história, tem um cara que tá gostando dele, pensa que ele é mulher, eu fiz aquela cena, bem chupada mesmo, do ‘Quanto Mais Quente Melhor’:
‘Eu não posso casar com você, eu sou loira pintada, não sou natural’
‘Eu não ligo’.
‘Mas eu não posso ter filho.’
‘Não importa, a gente adota um’
‘Eu sou homem’
E o outro diz: ‘Ninguém é perfeito.’

Essa cena foi cortada, eu tive que fazer outro final, ele dá uma surra no homem e eles brigam.

NORMAS DA CASA

“A gente é acusado de coisas que a gente não tem culpa. A Globo sempre me deu liberdade de fazer a história que eu quisesse. Agora, existem certas normas que são rígidas, até hoje tem coisas que você não pode falar. A Globo tem todo o direito, é uma empresa, tem todo o direito de achar que não vai ser bom pra imagem dela.

PÓS-GLOBO

“Não tenho mais vontade de escrever novela, não tenho mais saúde pra isso. Você acorda às 7h da manhã, vai dormir às 2h. Gilberto não escreve mais, Benedito não escreve mais, Manoel Carlos não escreve mais, é muito trabalho.”

“Eu tô bem assim. Tô parado um tempo, vamos ver o que vem.”

Abaixo, a entrevista completa com Tony Goes.

 

Curta nossa página no Facebook e siga-nos no Twitter

Cristina Padiglione

Cristina Padiglione