Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Venda de ‘Dez Mandamentos’ da Record para a TV Brasil não tem precedentes

Moisés (Guilherme Winter) em cena de 'Os Dez Mandamentos' / Divulgação

É certo que a Record, emissora aliada ao governo Bolsonaro, venda “Os Dez Mandamentos” para o mercado internacional por um preço bem melhor que R$ 3,2 milhões, custo anunciado pela TV Brasil no Diário Oficial para a aquisição do licenciamento da novela bíblica, que estreia nesta segunda-feira (5) pela rede pública sustentada pelo governo federal de Bolsonaro.

Diluindo essa soma por 242 capítulos, teremos cada episódio ao valor de R$13,2 mil.

A pergunta é: que outra emissora aberta compraria uma novela bíblica que foi vista em 2015 e 2016 e reprisada entre 2017 e 2018 por uma rede de alcance bem maior no próprio país?

É comum que TVs públicas reexibam ou dividam custos de séries entre elas ou adquiram produções vistas por uma pequena escala de público na TV fechada, dando ao povo, como indica o caráter “público”, a chance de ver algo antes restrito a uma minoria que podia pagar por isso.

É muito excepcional, no Brasil, que uma TV pública apresente algo que já foi visto pela TV aberta comercial, e isso passa a ser algo inédito quando se fala em cunho religioso.

No caso da TV Brasil, a compra de uma novela já é fato inédito. Questionada por meio de sua assessoria de imprensa, a TV Brasil informa que esta é a primeira novela adquirida pela emissora púbica, mas o canal já adquiriu produções “do Grupo Globo”, da TV Cultura e da Rede Nacional de Comunicação Pública.

O blog questionou de volta quais produções do Grupo Globo o canal exibiu, mas não obteve resposta ainda. Títulos como “Detetives do Prédio Azul – DPA” ou “Valentins” só foram apresentados pelo Gloob, canal infantil pago do Grupo Globo, e estão no GloboPlay para assinantes. É uma situação completamente diferente de “Os Dez Mandamentos”.

Para não dizer que nunca houve uma produção de TV aberta comercial exibida por TV pública, sim, houve “O Sítio do Picapau Amarelo”, na versão feita entre 2001 e 2007, adquirida pela TV Cultura em 2013. Mas, na ocasião, a Cultura anunciou que a exibição estava condicionada à cessão para os canais da Globo Internacional dos direitos sobre a exibição do “Castelo Rá-Tim-Bum” e do “Cocoricó”, sem custos para os cofres da emissora, custeada pelo governo do Estado de São Paulo.

A Globo também exibia em primeira mão o Telecurso 2º Grau, curso didático a distância para adultos, bancado pela Fundação Roberto Marinho, que a Cultura apresentava quase simultaneamente, sob a proposta de encampar conteúdo educativo em sua programação. De novo, a Globo cedia os direitos à Cultura.

A Cultura exibe também várias produções infantis que já foram vistas pela Discovery Kids, como apresenta atualmente uma série já mostrada pelo GNT, “Três Terezas”, com Denise Fraga, e “Poesia com Maria Bethânia”, mas, novamente, do Arte 1, canal pago.

É normal que uma janela aberta sem recursos para grandes gastos se interesse por exibir em segunda mão produções que só foram vistas por janelas de alcances menores e mais elitistas –daí o nome e a vocação de quem se diz TV púbica.

Embora o custo de R$ 13,2 mil por capítulo seja baixo para o seu valor no mercado internacional, o blog não conseguiu traçar paralelos para o caso de “Os Dez Mandamentos” justamente pela falta de precedentes, ou seja, de uma produção de TV aberta vendida para outra TV aberta no país.

“Procuramos alternativas para cumprir a nossa missão”, explicou Denilson Morales, diretor de Conteúdo e  programação da TV Brasil. “Uma delas foi incentivar a produção nacional (aquelas que se encontram em acervos) e dar visibilidade a grandes obras, licenciando produtos de ponta de outras emissoras e distribuidores de conteúdo do país, como a novela ‘Os Dez Mandamentos’, que foi case de sucesso na TV brasileira e será revista aqui, na TV Brasil, canal que tem crescido em audiência e relevância ao longo dos anos”, completou, em release distribuído pela emissora por ocasião do anúncio.

Mas a situação da TV Brasil está longe de apontar êxito. Segundo relatou em uma discussão pelo Twitter o ministro das Comunicações Fábio Faria, a EBC, Empresa Brasil de Comunicações, que abriga a TV Brasil, dá prejuízo de R$ 550 milhões anuais, o que inviabilizaria sua venda para o setor privado, como o governo Bolsonaro ameaçou fazer.

O custo de uma novela depende não apenas de seu êxito em audiência, mas de seu tempo de produção e de quantas vezes já foi exibida naquele território, em canal aberto ou fechado.

O Multishow pagou US$ 300 mil por ano para cerca de 600 episódios de “Chaves” e “Chapolin” quando o dólar estava a R$3,80. Mesmo considerando que o pacote previa produções inéditas de alguns episódios, o conteúdo já era antigo e estava em exibição no Brasil havia pelo menos três décadas, pelo SBT, rede aberta e de alcance bem maior que o canal pago do Grupo Globo.

Dado o sucesso que “Os Dez Mandamentos” encontrou em sua exibição original, tomando uma fatia relevante de audiência da Globo em horário nobre, e também em sua reprise, assim como em outros países, como Argentina e Chile, é esperado que Moisés de novo encontre uma plateia capaz de elevar os índices de audiência da TV Brasil.

A pergunta é se isso há de se reverter em patrocínios e anúncios que eximam o cidadão brasileiro de pagar por algo que ele já teve chance de ver. A TV Brasil não respondeu a esta dúvida. Mais do que isso, “Os Dez Mandamentos” é algo que já se pagou e não precisa de verba pública, diferentemente de dezenas de produções brasileiras de cunho educativo e cultural que aguardam por uma chance de serem contempladas.

Mas a mamata (para os outros) acabou.

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Cristina Padiglione

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