Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Volta de ‘Tapas & Beijos’ endossa humor atemporal, mas expõe piora do país

Andréa Beltrão, Flávio Migliaccio e Fernanda Torres em 'Tapas & Beijos' / Divulgação

Produzido entre 2011 e 2015, o seriado “Tapas e Beijos”, com Fernanda Torres e Andréa Beltrão na linha de frente, prima por um humor muito bem azeitado, do texto à interpretação e edição final, com elegância e, sobretudo, atemporalidade. Nesses dias em que personalidades e ideias são canceladas a cada meia hora nas redes sociais, com mutação veloz sobre termos e conceitos que já não parecem adequados a discussões sobre gênero e raça, especialmente, não é qualquer programa de TV que pode sair da gaveta cinco anos depois de encerrado e ir diretamente para a tela, sem restrições.

Diretor e autor da série, respectivamente, Maurício Farias e Cláudio Paiva admitem que sequer participaram da revisão dos capítulos que irão ao ar. A tarefa ficou a cargo do pessoal da programação, terreno de Amauri Soares, mas quando lhes fiz a pergunta, em uma entrevista coletiva virtual promovida pela Globo na última semana, notei zero de preocupação na expressão deles com a pergunta: afinal, haveria ali algo que não pudesse ir ao ar hoje?

Só então eles se deram conta de que mal sabiam quais episódios irão ao ar, se a ordem de exibição será cronológica ou de uma temporada específica. “A gente não viu esse material”, disse Farias. “É claro que a gente conhece esse material todo”, completou Paiva, lembrando que o “GNT tem maratonas aos domingos à noite”, o que vale como confiança de que o conteúdo continua obtendo boa aceitação entre o público.

“A gente está voltando agora para a TV aberta. Talvez um detalhe o outro possa incomodar os novos tempos”, diz. De toda forma, a proposta original central já parte de argumentos bastante conectados com o mundo atual, o que faz de “Tapas” um enredo ligeiramente à frente do seu tempo nas questões de gênero e raça.

Falamos, afinal, de duas mulheres se dedicando à vida profissional, as vendedoras Fátima e Sueli, que são mais competentes que o dono da loja de vestidos de noiva, Djalma (Otávio Muller). Essa premissa já aponta para uma comédia feita sob a ótica feminina, abordagem que se não é rara, lugar comum tampouco é.

Fernanda Torres cita um fator, e não é qualquer coisa, que pode causar estranhamento ao momento atual do país. Para além da pandemia, experimentamos uma queda drástica nos índices de emprego em relação àquele período em que o país celebrava um boom trabalhista e a ascensão da classe C, bem como o aumento do poder de consumo dos mais pobres.

“Quando fizemos era o boom da classe C, sobre o novo público que tinha ascendido, era um programa sobre trabalho, com sensação de pleno emprego, eram todos empregados. Fiquei pensando nessa mudança. Hoje estariam todos na informalidade”, diz ela.

Vladimir Brichta,o Armane, concorda, mas acredita que a série “envelhece muito bem por causa de um grande mérito dos criadores: as grandes discussões de hoje em dia, que são a reivindicação de legitimidade, de representatividade, já estão em ‘Tapas’. As pessoas que criaram esse programa já estavam muito conectadas nisso”.

Fátima e Sueli eram duas solteironas a serviço de uma loja de noivas na movimentada Copacabana, o que já provoca uma série de situações divertidas. Os namorados e flertes, do Armane ao Jorge de Fábio Assunção, passando pelo Jurandir de Érico Brás e pelo dentista de Daniel Boaventura, só alimentavam o sonho de uma relação estável que sempre parecia instável em razão dos mil mal entendidos que geram piadas em um seriado.

AVE, SEU CHALITA

Coroando tudo isso, tem Seu Chalita, o adorável personagem de Flávio Migliaccio, que se matou em maio, aos 85 anos, e deixou uma carta lamentando a falta de atenção do país aos seus velhos.

“Eu considero a morte dele uma morte política, a gente vê os nossos velhos solitários, invisíveis, desprezados, vale essa reflexão”, intervém Fábio Assunção, que continua: “A gente tem que pensar nos velhos do Brasil, a gente tem muita sorte em trabalhar com arte, e trabalhar juntos, até virtualmente, mas tem muita gente que está absolutamente sozinha, que não é valorizada. Que bom que o Flávio vai reaparecer na sua melhor forma. Eu chamava ele de ‘Sir’, porque se fosse em outro país ele receberia um título de ‘Sir’, pelo conjunto da obra, pela dedicação de uma vida inteira, acho que a série traz isso de uma forma maravilhosa, contagiando o público com alegria”.

Andréa Beltrão endossa: “Flávio era o nosso astro-rei no programa, nosso poço de sabedoria, o maior comediante, um ator imenso, vai dar muita saudade pra todos nós e vai ser muito revê-lo, vai ser uma despedida nossa pra ele, já que  agente não teve a oportunidade de estar com ele nos últimos tempos. E para o público também. Mas ele vai ficar pra sempre. Algumas pessoas não morrem, elas ficam”.

Ator com quem Migliaccio mais contracenava, Érico Brás se emociona ao lembrar que um dia o veterano lhe propôs de fugir das gravações para ir ao shopping mais próximo, almoçar e assistir à estreia do filme “Um Conto Chinês”. E assim fizeram, como duas crianças. “Tenho lembranças muito profundas desse cara que foi um mestre, tudo o que eu tenho dele aqui eu guardo”, afirmou.

Filho do cineasta Roberto Farias, o diretor Maurício Farias lembrou que contracenou com Migliaccio ainda criança, no clássico “As Aventuras do Tio Maneco”, título que Fernanda Torres também cita como parte de sua memória afetiva de infância. “Em ‘As Aventuras do Tio Maneco’, ele era ator e diretor principal, e eu era uma criança que fazia parte da história junto com meus irmãos”, conta Farias. “Imagina uma criança no set, eu não sabia nada, e o Flávio, através dessa pureza que ele tinha, desse lado poético que ele tinha, ele conseguia criar uma atmosfera com a gente e levar aquilo pra onde ele queria”, lembra.

“Foi uma alegria imensa, poder, junto com o Cláudio [Paiva], tornar possível reencontra-lo da forma como eu o reencontrei, 30, 40 anos depois.”

Outro mérito de “Tapas & Beijos” é não resvalar diretamente em reflexões político-partidárias, sem jamais flertar com a futilidade. Qualquer diálogo que pudesse sugerir empatia, respeito e direitos de cidadania acontecia sem panfletagem, com a leveza ideal para alcançar o espectador com mais eficiência. Não é uma equação fácil de se alcançar.

O programa vai ao ar todas as terças, a partir deste 4 de agosto, às 23h35, na Globo.

 

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Cristina Padiglione

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