Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Brasil avança na proteção de seu audiovisual diante da indústria mundial do streaming

Alice Carvalho em 'Cangaço Novo', série de criação, temática, elenco e locações brasileira, cuja propriedade patrimonial é da estrangeira Amazon Prime Video / Divulgação

Há pelo menos dez anos em discussão, a necessidade de regulamentar os serviços de streaming no Brasil finalmente encontra sua primeira luz concreta no meio, e não mais no fim do túnel.

A Comissão de Educação e Cultura (CE) aprovou e deu seguimento à Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) o projeto de lei (PL 2331/2022) que se propõe de fato a alimentar o setor por meio do pagamento de um Condecine próprio, isto é, a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional. Foi a criação do Condecine que deu novo rumo à produção independente no Brasil desde que a Lei da TV paga entrou em vigência, em 2012.

Com a retração da TV por assinatura e o avanço do streaming, a maioria esmagadora das produções nacionais tem sido alvo das plataformas, e não mais dos canais de TV, sem que nenhuma contrapartida para a indústria local tenha sido exigida até aqui, a fim de fomentar o crescimento do setor no Brasil.

Assim, quando uma produtora como a O2 Filmes realiza uma proeza como “Cangaço Novo”, ou quando a Conspiração põe na tela um título como “Dom”, o Prime Video, que tem nesses dois títulos algumas das produções de língua não inglesa mais vistas do planeta no seu menu, fica com toda a propriedade patrimonial das obras ditas brasileiras.

Da forma como funciona hoje, essas são ideias brasileiras, de roteiros brasileiros, com locações no Brasil, elenco e temática brasileiros, mas  falta-lhes um selo classificado como CPB – Certificado de Produto Brasileiro.
A O2 e a Conspiração prestaram o serviço, mas a Amazon Prime é dona eterna desses títulos, podendo exibi-los no mundo todo. A propriedade patrimonial é da plataforma. Ex-presidente da Ancine e com larga contribuição ao cenário que propiciou o crescimento das produtoras brasileiras por meio de leis de fomento ao audiovisual, Manoel Rangel agora assina a produção executiva de “DNA do Crime”, superprodução recém-lançada pela Netflix, também sem direito ao CPB.

Romulo Braga e Maeve Jinkings na série ‘DNA do Crime’, recém-lançada pela Netflix / Divulgação

 

Pelo Condecine, fundo que já é abastecido por canais de TV paga e que também deverá ser “engordado” pela contribuição das plataformas, os serviços de streaming passariam a ter acesso a uma verba usada para produzir conteúdo no Brasil. Mas a condição para o uso desse caixa é manter a propriedade intelectual com a produtora brasileira. Uma obra destinada à Netflix, por exemplo, ficará disponível no seu catálogo por período determinado, voltando após alguns anos para o controle da produtora, que poderá renegociar o título a seu modo, inclusive para a TV e exibidores internacionais.

De autoria do senador Nelsinho Trad (PSD-MS), a proposta foi relatada na CE pelo senador Eduardo Gomes (PL-TO), que incluiu na regulamentação plataformas de streaming, redes sociais que reproduzem conteúdo audiovisual e canais de televisão transmitidos pela internet.

Pelo projeto, as plataformas terão de cumprir uma cota de conteúdo nacional de 2,5% de seus catálogos nos dois primeiros anos de vigência da lei, até atingir 10% em oito anos.

SALVAÇÃO PERECÍVEL

Com a redução da Ancine a partir de 2019, pelo governo Bolsonaro, um esvaziamento corroborado pela paralisação imposta pela pandemia, muita gente adora dizer que o streaming vem “salvando” o audiovisual no Brasil. Mas não é bem assim

O alto volume de realizações nessa seara por gringos como Netflix, HBO, Prime Video, Disney, Paramount e afins não tem sido exatamente um favor para o segmento, embora isso seja melhor que nada, claro.

Embora essas empresas, e também o Globoplay, venham alimentando o setor e empregando profissionais brasileiros, as obras ditas “originais”, onde estão os maiores investimentos dos serviços de streaming, são patrimônio das plataformas, que normalmente impõem a última palavra sobre o rumo desses conteúdos, sem margem de negociação para produtoras, diretores e roteiristas. Afinal, o dono do dinheiro sempre manda nas escolhas.

Mas vamos lembrar que os gigantes do streaming agem no Brasil como já não fazem nos mercados norte-americano, europeu e asiático. E estamos falando aqui de uma nação que figura no Top 3 das populações que mais se permitem hipnotizar diante de uma tela. Brasileiro é um povo que dedica horas e horas do seu dia a ver vídeos, o que faz desse consumidor uma preciosidade para os players (canais e serviços de streaming). Daí a urgência de se cobrar mais respeito das plataformas ao produto made in Brazil, mercado tão cobiçado por quem explora o ramo.

O MECANISMO

O projeto-de-lei em questão propõe uma cobrança anual, calculada sobre a receita bruta das empresas, incluindo os ganhos com publicidade e excluindo os tributos diretos. Empresas com faturamento anual acima de R$ 96 milhões pagarão 3% e as que faturarem entre R$ 4,8 milhões e R$ 96 milhões recolherão 1,5%. Já as plataformas com faturamento inferior a R$ 4,8 milhões por ano serão isentas do pagamento, o que permite com que os serviços menores não sejam esmagados pelos gigantes.

Ainda segundo a proposta, até metade do valor da contribuição pode ser deduzida com investimentos na capacitação técnica do setor audiovisual ou pela exploração de conteúdos nacionais de produtoras brasileiras independentes. Já os rendimentos com exploração ou pela aquisição de audiovisuais a preço fixo a produtores, distribuidores ou intermediários no exterior serão taxados.

Na oferta dos serviços de streaming, devem ser observados os princípios da liberdade de expressão artística, intelectual, científica e de comunicação, dando peso à diversidade cultural e ao conteúdo brasileiro. Pela Lei da TV paga, por exemplo, reality shows não podem ser financiados pela verba da Condecine.

A Condecine também alimenta e é alimentada pela exploração de produtos audiovisuais em salas de cinema, TVs abertas, TVs fechadas e telefones móveis no Brasil. E no entanto o streaming, mercado ligado a produtos audiovisuais que mais cresce no Brasil e no mundo, até agora não contribui com nenhum tipo de taxa ou cota capaz de valorizar a indústria brasileira.

O assunto motivou a formação da Frente da Indústria Brasileira do Audiovisual Independente (FIBRAv), composta por 12 associações e sindicatos do setor com o objetivo de debater e contribuir para a aprovação da tão protelada regulação do streaming no país.

A frente defende que a Condecine VoD represente uma fatia até maior do que aquela proposta na PL, com alíquota de 14% sobre a receita bruta anual das plataformas, sendo que até 70% desse valor poderia ser abatido para aquisição, por prazo determinado, de direitos de exibição de obras audiovisuais brasileiras independentes majoritariamente inéditas.  Esse licenciamento pode se dar tanto para aquisição de obras já existentes quanto para novos filmes, séries e outros formatos de interesse dos serviços de streaming.

A proposta original da FIBRAv é que os serviços de streaming passem a pagar uma Condecine de 14%. A taxa abastece o FSA (Fundo Setorial do Audiovisual), que distribuiu recursos para produções brasileiras independentes, alimentando também uma política de investimentos regionais.

AQUI SE FAZ, AQUI SE VÊ

Empresas como a Netflix, que tem o Brasil na 3ª posição entre os países com maior número de assinantes, perdendo apenas para os Estados Unidos e o Reino Unido, não recolhem Condecine porque o advento e desenvolvimento da transmissão de vídeos via internet – tecnicamente chamada de Over The Top (OTT) – gerou novos paradigmas que a legislação brasileira não conseguiu acompanhar.

Uma transmissão OTT não precisa de infraestrutura física (como é o caso da radiodifusão e das telecomunicações), funciona de forma descentralizada e não é regulada por nenhum órgão específico.

“O valor arrecadado com Condecine-título, teles e remessa representou mais de R$ 884 milhões para o FSA [Fundo Setorial do Audiovisual] em 2020, segundo dados da Ancine”, lembra André Sturm, presidente do Sindicato da Indústria Audiovisual do Estado de São Paulo (SIAESP), uma das entidades que formam a FIBRAv. “Agregar uma contribuição advinda do faturamento das plataformas permitirá ao governo federal expandir ainda mais o apoio à diversidade temática e territorial na produção audiovisual brasileira independente, via políticas públicas”.

“É um princípio justo que esses meios de distribuição de conteúdo audiovisual de recentes modelos tecnológicos tenham parte de seus lucros revertida sob forma de contribuição ao fomento e desenvolvimento da indústria local”, defende Mauro Garcia, presidente da Brasil Audiovisual Independente (Bravi), a associação das produtoras independentes brasileiras. “Cobrar por título não faz sentido, uma vez que, diferentemente do que ocorre com as grades de programação das salas de cinema e canais de TV, os catálogos das plataformas são potencialmente ilimitados. Uma Condecine cobrada sobre o faturamento das empresas de streaming nos parece a solução mais isonômica, uma vez que defendemos que a regulação alcance a todas.”

A Frente da Indústria Brasileira do Audiovisual Independente (FIBRAv) reúne 12 associações e sindicatos do setor, a saber: ABRACI (Associação Brasileira de Cineastas), ABRANIMA (Associação Brasileira de Empresas Produtoras de Animação), APACI (Associação Paulista de Cineastas), APAN (Associação de Profissionais do Audiovisual Negro), API (Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro), APRO (Associação Brasileira da Produção de Obras Audiovisuais), BRAVI (Brasil Audiovisual Independente), CONNE (Conexão Audiovisual Centro-Oeste, Norte e Nordeste), FAMES (Fórum Audiovisual Minas Gerais, Espírito Santo e Sul), +MULHERES (Mulheres Lideranças do Audiovisual Brasileiro), SIAESP (Sindicato da Indústria Audiovisual do Estado de São Paulo) e SICAV (Sindicato Interestadual da Indústria Audiovisual).

Curta nossa página no Facebook e siga-nos no Twitter

Cristina Padiglione

Cristina Padiglione