‘Renascer’ vence o desafio de honrar a versão original
Ainda que a nova “Renascer” seja mais uma homenagem ao autor Benedito Ruy Barbosa, sem pretensão de superar a versão original, confesso que me apavorava a ideia de um remake do enredo que encantou o país há 30 anos. Seria uma decepção encontrar algo que fosse inferior, mesmo que milimetricamente, à produção de 1993. E digo isso como quem testemunhou aquela realização que catapultou os créditos de Luiz Fernando Carvalho para o hall dos diretores mais cobiçados pela indústria do audiovisual brasileiro.
Quanto mais emblemática a obra original, maior o risco de uma releitura causar estrago ao patrimônio que lhe deu origem, seja uma música, um filme, uma peça ou uma novela.
Ao cabo de uma semana da “Renascer” que renasceu pelas mãos de Bruno Luperi, neto do autor e também responsável pela bela releitura feita em “Pantanal” dois anos atrás, é possível confirmar e reconfirmar a grandeza da atual novela das nove da Globo. É satisfatório reforçar a certeza de que “Renascer”, assim como “Pantanal”, é uma obra-prima de fôlego imperecível, capaz de sensibilizar a plateia dos anos 1990 ou dos anos 2020, considerando todo o abismo de transformações que se abriu de lá para cá no comportamento das pessoas, sem distinção de idade, cor, credo e faixa social.
É o que se chama de clássico, de fenômeno, ou do nome que quiserem dar à perenidade de uma história capaz de mobilizar a atenção de plateias tão distintas. No mundo de mil telas e opções nichadas de entretenimento para contemplar cada indivíduo, é um bilhete premiado conseguir aglutinar perfis tão diversificados diante de um mesmo espetáculo.
Mas há ainda outro abismo a observar: aquele que separa “Terra e Paixão”, novela anterior do horário, também classificada como rural, de sua sucessora. Há na trama de Walcyr Carrasco um agro tech que não fala ao coração, que não conecta o público à história, que não convence a plateia e nem de longe funciona como os romances criados por Benedito Rui Barbosa. Falta a Carrasco a escuta do campo. Não basta misturar elementos de folhetim a uma plantação ornamentada por maquinário pesado e um Cauã Reymond injustiçado de ragata, se o enredo em questão poderia perfeitamente se desenvolver em âmbito urbano.
É gritante a distância entre as rusgas de La Selva (Tony Ramos) e as de Belarmino, o coronel que foi de José Wilker e agora é de Antonio Calloni. Para ser justa, justíssima, o vilão da vez entretém o público pela torcida contrária, sem gerar repulsa. Sua frustração em iniciativas perversas cumpre a função de valorizar o mocinho, mas também diverte e reconforta uma plateia sedenta pela vitória da justiça, como na vida real.
Tenho me interessado por assistir ao capítulo do dia e imediatamente buscar no GloboPlay o episódio referente a cada trecho da história vista em 93. Tudo melhorou, e é claro que aí não vai uma nota de superação de Gustavo Fernandez, diretor artístico da vez, sobre Luiz Fernando Carvalho, porque o upgrade se dá especialmente em função da tecnologia e da nossa busca por civilidade e empatia no trato com o outro.
NÃO É NÃO
Menos teatral que o coronelzinho de Leonardo Vieira, o José Inocêncio de Humberto Carrão economiza no gestual e no tom de voz com uma interepretação sob medida para representar o poder econômico que ascende com discrição em meio aos fanfarrões do cacau ao seu redor. O figurino, simples a ponto de quase se confundir com os de seus empregados, conspira a favor da construção (embora eu ainda não entenda o uso de mangas compridas sob o termômetro baiano). Ao abordar sua Santinha, Zé Inocêncio não a toma à força, como fez o protagonista de 1993. Na releitura de Bruno Luperi, Maria Santa, hoje vivida por Duda Santos, até hesita em ceder ao primeiro beijo, mas não tenta se desvencilhar do rapaz, como fez Patrícia França na cena original.
De lá para cá, evoluímos à certeza de que “Não é Não”.
Não seria possível hoje ver o herói da história vencer a mocinha pela força física, jogando-se sobre ela na grama. Naquele tempo, o público entendia que a resistência da moça se justificava pelo temor ao pai, não ao fato de ela não querer o beijo. Mas agora, ainda que diante do mesmo contexto, essa solução seria um desserviço a incansáveis campanhas para frear abusos de ordem sexual.
O pai, chamado “pai-boi” por vestir a carcaça do boi cênico que conduz a festa do Dia de Reis, põe agora Fábio Lago no papel que foi de Cacá Carvalho. Se a interpretação anterior pendia mais para a loucura, a atual fica a serviço da maldade, mas não sem desprezar a patologia que o angustia. E amplia a repugnância ao machismo do sujeito que se curva ao patrão para depois infernizar a mulher e as filhas em casa. Nesse ponto, o enredo ficcional é tristemente real, exibindo o pai que estuprou uma filha e a explusou do lar diante da gravidez, condição que tornaria pública um vexame todo seu.
Uma sequência de automutilação, que mostrava Cacá Carvalho se chicoteando no original, ficou de fora dessa vez. Há uma evidente amenização da estética da violência, como já se viu na sequências do atentado sofrido por Inocêncio no primeiro capítulo. A pele arrancada por jagunços e recosturada por Rachid (Luiz Carlos Arutim em 93 e Gabriel Sater na produção da vez) economizou no sangue e nos closes de agulha.
DIVERSIDADE
A releitura também nos brinda com uma Bahia mais real do que a média histórica de novelas da Globo na região. Em 1993, Marcos Palmeira, como o caçula de José Inocêncio (papel que herdará de Carrão na segunda fase) e Patrícia França eram donos da pigmentação mais escura do elenco central. Agora, Maria Santa é negra, o que põe Belize Pombal na voz de sua mãe, Quitéria, vivida pela branca Ana Lúcia Torre há 30 anos. E José Pedro, que foi de Palmeira no original, será de Juan Paiva.
Antes tarde do que nunca: viva a percepção da necessidade de inclusão e diversidade, o que de certa forma também é obra da multiplicidade de telas. Muitos tipos antes relegados a coadjuvantes passaram a se ver em produtos nichados e a notar a ausência de sua representatividade em obras para a massa. O conformismo de outrora foi perdendo espaço, na contramão do poder de consumo de uma multidão antes invisibilizada e agora notada inclusive pelo universo dos anunciantes, que pagam a conta final. É preciso notar que as políticas de diversidade no audiovisual não são, de modo geral, obra de mera bondade de seus executivos nem caminham isoladamente como tais.
CORONÉIS E JAGUNÇOS
Luperi se dá ao luxo de inserir novos personagens, sem no entanto abrir mão dos primorosos diálogos do avô, o maior contador de histórias que este país já conheceu dentro do que se entende como Brasil profundo. As mudanças, quando aparecem, são sutis, mas fazem toda a diferença para o contexto atual. Ao repetir que o empregado lhe “roubou uma carroça e dois burrinhos da melhor qualidade”, Belarmino ouve de Inocêncio a indignação que merece ser sublinhada pela expressão do outro, que repete: “dois burrinhos e uma carroça???”.
A presença inédita da fazendeira Cândida, que vende suas terras a Inocêncio, trouxe Maria Fernanda Cândido no capítulo de estreia, emprestando prestígio à novela e uma base mais sólida ao enredo. Ainda que ela tenha sido revelada pela Band e se projetado por meio dos folhetins da emissora – aconteceu a partir de “Terra Nostra”, do mesmo Benedito Ruy Barbosa -, sua figura, a essa altura, surge com a bagagem internacional de quem virou bruxa ministerial na saga blockbuster de Harry Potter e também primeira-dama da máfia italiana na bela produção de Marco Bellocchio, “O Traidor”, sobre Tommaso Buscetta.
Já Enrique Diaz como Firmino, outra novidade, é um respiro. Apesar da maldade carregada em cada atitude, o sujeito tem lá sua graça, obra alcançada pela competência do ator e do texto, com apoio do figurino, da maquiagem e da direção. Seu pseudo-coronel protagoniza com Inocêncio uma das melhores falas desta primeira semana, quando o mocinho constata ter sobrevivido ao atentado de seus jagunços.
_ “Sinal de que não se faz mais jagunço como antigamente”, diz Firmino.
_ “Nem coronel”, responde Inocêncio.
Mesmo considerando a maestria da maioria dos atores, a direção de elenco se mostra evidente, algo próximo do excepcional para uma novela, gênero cujos prazos são tão mais apertados que os do cinema ou de séries. Não há quem destoe em cena, ou não até aqui. Convém parar tudo que se está fazendo para ver Matheus Nachtergaele, Calloni, Belisa, Lago, Kike Diaz e o irmão Chico, ali feito padre.
DO SOM À IMAGEM
O ritmo dos folhetins se alterou drasticamente em 30 anos, com cenas mais curtas e edições mais clipadas. Nesse contexto, é louvável constatar como “Renascer” consegue respirar e honrar o que se entende como narrativa contemplativa. É alentador ouvir a musicalidade de Mônica Salmaso marcando todas as notas de “Canto Sedutor”, de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro, enquanto um coronelzinho e sua santinha sofrem quase calados, sem sofreguidão. O Inocêncio de Leonardo Vieira chorava de soluçar. O de Carrão comove só de verter lágrimas.
Do pranto explícito ao silencioso, a emoção é certa. Ao telespectador que não viu a primeira versão, fica a dica: pode deixar um lencinho à mão. Para o último capítulo, convém reservar uma caixa. Lembro-me de ter me desidratado no último capítulo.
Vejo com acerto a troca de Ivan Lins por “Lua Soberana” na abertura. Regravada por Luedji Luna e Xênia França, a música antes só embalava cenas de pés amassando cacau e as vinhetas de encerramento e início de cada bloco. A edição, feita de imagens reais e não de animação, como há 30 anos, é oportuna para a contemporaneidade audiovisual da nova “Renascer”.
Tudo está cuidadosamente no lugar, honrando o espaço que esta obra sempre mereceu no meu e no coração de tanta gente que se derreteu pelo original. A audiência, para a satisfação de quem ainda tem esperanças de ver a indústria do audiovisual investir mais em repertório, tem respondido muito bem, amém.