Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘Grande Sertão’, leitura de Guel Arraes para o clássico de Guimarães Rosa, vale ser visto

Caio Blat como Riobaldo, narra enredo de seu passado no filme. Foto: Ricardo Brajterman/Divulgação

Ainda me lembro do arragalar de olhos que me consumiu quando, em 2019, Guel Arraes contou a mim e a Mauricio Stycer, nos bastidores da CCXP, que faria um filme sobre “Grande Sertão: Veredas”, em parceria com Jorge Furtado. A ideia seria trocar os jagunços dos séculos 19/20 pelos soldados do tráfico de drogas que dominam as favelas no mundo contemporâneo.

As facções no espaço dos bandos, focalizando a contemporaneidade urbana dos conflitos antes confinados ao sertão.

Como bem diz uma das mais emblemáticas frases daquela que é tratada por muita gente mais erudita que eu como a maior ra da literatura brasileira, “o que ela [vida] quer da gente é coragem”. Naquele instante, pensei exatramente isso: que genialidade conduzir esse enredo aos dias de hoje, mas, caramba, que coragem é levar Riobaldo às telas. Sempre que revisito as páginas originais de Guimarães Rosa eu me pergunto como traduzir aquilo para outros idiomas e formas de narrativa, seja teatro, cinema ou TV.

Outras incursões já foram feitas nesse terreno e, em certa medida, muito bem-sucedidas, a começar pela minissérie adaptada pelos Walters Avancini e George Durst para a Globo, com Tony Ramos e Bruna Lombardi como Riobaldo e Diadorim, respectivamente. Certamente, pelo alcance que a Globo tinha em 1985, aionda maior que hoje, vem da ocasião o alcance mais expressivo da obra. Sua leitura, como sabemos, exige concentração e foco, sem falar no ouvido do leitor para assimilar a prosódia de Riobado, narrador do enredo. “Viver é muito perigoso”, digo sempre, pautada por ele.

Há pouco mais de um mês, tive a oportunidade de assistir enfim ao filme de que ouvi falar há mais de quatro anos e que estreou esta semana nos cinemas brasileiros. Na sessão onde testemunhei o longa-metragem estavam também o próprio Guel e o amigo Stycer, além de Eduardo Sterblicht, destaque no elenco, que adentrou a sala do Cine Marquise, no Conjunto Nacional, já com as luzes da sala apagadas.

Digo aqui o que tenho dito a quem me pergunta sobre o longa: “que tal?”

Não é uma obra que absorve o espectador por completo, como aquelas em que você, na cadeira do cinema, esquece a sua vida e os seus problemas para se ocupar do enredo exposto na tela. Mas não se abandona a sala sozinho. O espectador deixa o recinto com aquelas figuras em mente e com a voz de alguns personagens ainda a ecoar na cabeça. É uma construção interessante, intensa, bem edificada e, principalmente, muito válida de ser apreciada na tela grande, porque cumpre a função da arte ao afetar o espectador. Não se sai indiferente do cinema.

Mais que tudo, é um trabalho feito para ator brilhar. E enaltece, sem acanhamento, a linguagem teatral, tantas vezes posicionada na contramão do audiovisual. A câmera sublinha o exagero, o expandir de braços – como na sequência protagonizada por Mariana Nunes, mãe da garotinha morta por bala perdida. O ouro perseguido pelo bando de Joca Ramiro nas linhas originais agora é o pó branco, e este mesmo Joca Ramiro toma forma de Rodrigo Lombardi – viril, líder da facção, tatuado e estilizado.

A analogia que troca ouro por cocaína me remete a uma cena da série “Cidade dos Homens”, quando Acerola (Douglas Silva) explica, em sala de aula, a trajetória de Napoleão Bonaparte como se fosse a guerra do morro que habita no Rio de Janeiro.

A favela de Guel e Furtado não está localizada no Rio, em São Paulo, Salvador ou Recife. Nesse ponto, a disputa de facções converge para o mesmo drama: onde o poder público falha, o poder paralelo se estabelece, seja onde e quando for. Assim era com os jagunços, assim é com os chefes do PCC, Comando Vermelho e afins.

Frases inteiras estão salpicadas pelo roteiro, e seria mesmo um desperdício deixá-las presas às páginas do livro. Uma delas, dita por Lombardi/Joca Ramiro, está parcialmente sugerida na abertura deste texto: “A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quera ada gente é coragem.”

Também nesse aspecto, devo citar outra referência para mim – “Capitu”, adaptação de “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, em que o diretor Luiz Fernando Carvalho constrói toda uma narrativa visual de criação própria, adotando a íntegra do texto de Machado, sem que este seja subserviente ou subordinado ao acabemento visual. Que delícia é encontrar releituras assim, em que o texto é respeitado e replicado dentro de uma estrutura toda repaginada.

Mas, para além de todos as escolhas de Guel e Furtado, o que impressiona o espectador que já conhece “Grande Sertão” é a performance dos atores em cena, com Caio Blat brilhando no topo do topo de tudo. Quando digo que o filme não rouba a alma do espectador, devo fazer essa ressalva: a não ser por Caio, nosso Riobaldo, visto em dois tempos – o da ocorrência dos fatos narrados e o do tempo da narração, mais velho, relembrando seu passado e a incômoda paixão por Diadorim. Quanto êxito há no timbre de voz, no olhar e na comoção do ator.

 

Rodrigo Lombardi e Eduardo Sterblicht. Foto: Helena Barreto/Divulgação

Luiz Miranda, como o chefe da polícia, também surpreende, principalmente por não ser normalmente visto em papéis dramáticos. E Sterblicht, igualmente impressionante, não merece menos aplausos, mas, observe-se, está apoiado em bons recursos de make up, o que torna sua performance mais “fácil”.

Luís Miranda como Zé Bebelo, agora um policial. Foto: Helena B Barreto/Divulgação

A sinopse reza que “numa grande comunidade da periferia brasileira chamada ‘Grande Sertão’, a luta entre policiais e bandidos assume ares de guerra e traz à tona questões como lealdade e traição, vida e morte, amor e coragem, Deus e o diabo. Riobaldo entra para o crime por amor a Diadorim, um dos bandidos, mas nunca tem a coragem de revelar sua paixão.”

Nosso(a) Diadorim vem agora na pele de Luísa Arraes, atriz de tantas nuances. Para quem, como eu, viu Bruna Lombardi como tal, e Tony Ramos como Riobaldo, é impossível não traçar paralelos, ainda que a proposta do filme seja bem outra. Se Bruna pendia para um esforço de masculinização, de tão forte que é sua gênese feminina, Luísa por vezes se confunde com um garoto efeminado, e não como uma mocinha masculinizada. Mas aí está uma performance que também se conecta à contemporaneidade, que nos permite conhecer e apreciar tantos desdobramentos entre o que se convenciou chamar de masculino ou feminino.

Luisa Arraes e Caio Blat como Diadorim e Riobaldo. Foto: Helena Barreto/Divulgação

Vá ao cinema.

Aprecie a direção de atores, primorosa.

E leia o livro. Riobaldo sabe tudo. E nesse sentido, não haveria profissão mais adequada para encontrá-lo nessa releitura do que um professor, ofício brevemente mencionado no livro e ofuscado pela opção pelo cangaço.

 

Curta nossa página no Facebook e siga-nos no Twitter

Cristina Padiglione

Cristina Padiglione