PC Farias ganha retrato inédito em filme que revisita período recente e já quase ignorado
Mesmo para quem acompanhou em tempo real a ascensão e queda de Paulo César Farias, o PC, já é complexo compreender a real dimensão de seu papel no processo que levou Fernando Collor de Mello à presidência e que de lá o ejetou, via impeachment. Não bastasse essa parte da história recente, e no entanto quase ignorada pelas novas gerações, o homem ainda foi assassinado, ampliando uma série de controvérsias sobre sua intensa e breve passagem por este mundo.
Cabe portanto imaginar a confusão que aquele enredo (tão pouco crível para a ficção, mas plenamente real) produzirá na cabeça dos espectadores do filme “Morcego Negro” nascidos no mínimo depois de 1985. Esse é o grande desafio dos diretores Chaim Litewski e Cleisson Vidal, além de Lea van Steen, responsável pela montagem e com quem eles assinam o roteiro. O longa-metragem chegou aos cinemas na semana passada. Embalado por ótima trilha sonora – do repertório do personagem central aos hits chicletes surgidos na época –, o documentário apresenta um retrato inédito de PC Farias, com depoimentos e avaliações nunca antes trazidos à esfera pública.
Em dez anos de pesquisa e produção, sete países foram visitados e mais de 60 pessoas ouvidas. Evidentemente, apenas algumas entram em cena. É o caso de Teresa Collor, apontada na época como alguém que poderia ter desestabilizado, por razões passionais, as relações entre os irmãos Fernando e Pedro, responsável pela denúncia que levou ao processo de impeachment. Destaque-se ainda a forte presença de Ingrid, filha de PC Farias e Elma Farias, com relatos que de certa forma arrefecem o peso que todo o histórico do pai trouxe à família. E o jornalista Mario Sergio Conti, testemunha ocular do nascimento do processo rumo à derrubada do governo, de dentro da redação da revista Veja, que abraçou a denúncia de Pedro Collor em 1992.
Aqui, um parêntese: É de Conti o melhor livro sobre a era Collor, “Notícias do Planalto” (Cia.das Letras), um calhamaço de 500 e tantas páginas que pode ser lido em ritmo voraz.
O próprio Collor fala às lentes de Chaim e Vidal sobre o papel de PC, alguém que hoje encontra um sem número de figuras genéricas atuando mesmo papel de bastidores que o ex-tesoureiro desempenhou junto ao poder no início dos anos 90.
Quem conhece a história toda há de perceber a riqueza sintetizada no subtítulo do filme: “Amigo Privado, Inimigo Público – O Homem que Abalou a República”. O enredo nos apresenta em detalhes um PC que gostava não só de amealhar dinheiro, mas também de ouvir Beethoven, dançar tango e falar em latim e francês. Essa é uma faceta mal e porcamente restrita ao seu primeiro relato à CPI que o investigava, em 1992. E um território ofuscado pelos holofotes dedicados à imagem da arrogância atraída pelo poder, sempre com cigarro entre os dedos e o bigodão imponente, ou à cena final do corpo estendido na cama, na casa de praia em Maceió, com um tiro no peito, em 1996.
Chaim e Vidal não fazem papel de peritos para ditar se o crime foi de fato passional, como rezou a versão oficial, mas sublinham as várias pontas soltas da investigação que levou ao veredito final, e mencionam também as fortes conexões que aquela rede de tráfico de influências nascida nas Alagoas e alimentada no Planalto, viria a construir com o tráfico de drogas e a máfia italiana.
A PALAVRA DO DIRETOR
Ao blog, Vidal conta ter afeto especial pela dedicação que Ingrid Farias empenhou ao seu depoimento, resgatando memórias áridas para ela. A presença dela em cena consumiu um processo de três anos de negociação. As tratativas para convencer Fernando Collor a falar também foram complexas, lembra, “mas a presença dele era crucial para nós”.
O diretor lamenta a ausência de pelo menos dez pessoas no filme, algumas delas mencionadas ao final. Rosane Collor, à época primeira-dama, chegou a agendar entrevista em duas ocasiões, até admitir que não gostaria de falar sobre PC e desistir de aparecer no filme.
A narração da trama toda é permeada por depoimentos dos líderes espirituais de PC e Elma, pai e mãe de santo que lhes serviam como conselheiros.
Vidal era office boy aos 15 anos, quando viu acontecer, de dentro de uma agência bancária, o Plano Collor e todo o desespero que impactou a população na ocasião.
Aos 17, acompanhou com atenção a derrubada de Collor, eleito em um pleito no qual ele ainda não votava. “A CPI foi muito chocante para mim, eu era muito jovem e não tinha ferramentas para entender o que estava ali, a população brasileria também não tinha”, lembra.
A partir de sua caminhada profissional e da formação intelectual, a memória daquele plano pessoal foi ganhando força em seus interesses de pesquisas e estudos, e vieram a encontrar o foco de Chaim, 20 anos mais velho e ex-diretor da seção de televisão e vídeo da Nações Unidas.
“Chaim já era um jornalista que morava fora. Tinha visão externa e noções de geopolítica muito claras de relações de poder no mundo. Olhando para o Brasil e os nossos focos de interesses, a gente viu que gostava tanto desse período”, completa. “O Chaim me dá aula de geopolítica, as visões dele, até mesmo para chegar aos conflitos, são outras. Eu estou dentro do Brasil, e ele, fora.”
Vidal observa que PC é aquele “personagem que morre, mas continua vagando”, impactando o cenário ao redor. O projeto de “Morcego Negro”, que recebeu Menção Honrosa na edição de 2023 do Festival É Tudo Verdade, maior evento de documentários do país, chegou a ser oferecido a uma grande produtora em 2012, mas foi recusado. “Esse é um assunto complicado no Brasil. A gente está falando de uma época que não existia True Crime. Hoje, qualquer morte já esticam em 4 episódios”, observa, sobre a avalanche de séries do gênero no streaming.
“Tivemos um distanciamento histórico sobre o período para fazer uma investigação profunda, para esgotar o assunto, mesmo que não se consiga, mas que tente esgotar as perspectivas e ouvir as pessoas que estiveram no entorno dele, tanto em relações pessoais e afetivas como econômicas, ouvindo gente que nunca falou ou pouco falou, umas por estarem então em cargos públicos, e o que elas pensam hoje, 30 anos depois do impeachment.”
Para Vidal, o ponto em que a narrativa encontra as conexões com a máfia italiana é o mais complicado do longa. “A gente tenta responder às questões e dúvidas apenas a partir do que a gente ouve da Justiça italiana”, conta. Os diretores tentaram ouvir mafiosos italianos que tiveram contato indireto com conhecidos de PC, por transferência bancária.
A proposta faz parte da premissa de um roteiro disposto a desvendar como se forjou a figura do tesoureiro que veio do nada. Essa origem, como mostram os depoimentos ao longo do filme, pesou no apedrejamento público, em proporção superior àquela sofrida pelo então presidente, dono de DNA de grife política e econômica.
“Morcego Negro” tem como base o livro “Morcegos Negros”, do jornalista Lucas Figueiredo, referência ao nome do jatinho de PC Farias, outro ponto de suspeita de conexão com a máfia italiana.
Iniciativa da Terra Firme Filmes, o longa tem coprodução do Canal Brasil, Globo Filmes e Globonews, estando agora disponível apenas nos cinemas. Provavelmente, logo estará nos serviços de streaming, mas é daqueles filmes que valem a pena serem vistos na tela grande e sem interrupções.
Só se joguem na poltrona e se permitam consumir esse enredo pronto que a vida real escreveu, cheio de teorias da conspiração -aliás, não só teorias.