Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Elizangela era capaz de chorar com um olho só, dizia diretor

Elizangela como Aurora em 'A Força do Querer' / Divulgação

Diretor por quem tive o prazer de ser dirigida no curto período em que me exercitei como aprendiz das artes dramáticas, Del Rangel ( 1955-2020) dizia que conhecia apenas duas atrizes que eram capazes de chorar de um olho só, a depender da posição da câmera disposta a capturar a lágrima necessária para a dramaticidade da cena: Regina Duarte, com quem aliás ele foi casado, e Elizangela, que morreu nesta sexta-feira (3), aos 68 anos. A atriz morava em Guapimirim (RJ) e teve problemas cardiorrespiratórios.

O fato de ambas, Regina e Elizangela, terem discursado contra a vacinação para sanar a Covid-19, e Elizangela não tomou sequer uma única dose do antídoto, é uma coincidência – coincidência infeliz para quem, como eu, respeita a ciência e a informação, ainda que admire o trabalho das duas e a expressividade daquele olhar potente e raro, coisa de talento nato que não se ensina e mal se aprende.

Del não exagerava. Dividi o set com Elizangela em algumas oportunidades de festas, velórios e várias missas rezadas pelo padre Antônio, o Reitor vivido por Juca de Oliveira que dava título à novela “As Pupilas do Senhor Reitor” (1994-95), uma das melhores produções de dramaturgia da TV do Silvio.

A Elizangela com quem convivi, par de Renato Borghi naquela produção, não mostrava qualquer sinal do que viria a ser o bolsonarismo. Trafegava com respeito e profissionalismo em meio a um elenco que esbanjava créditos. Além de Juca de Oliveira, o cast era encabeçado pelas pupilas Débora Bloch e Luciana Braga, que faziam par com Eduardo Moscovis e Tuca Andrada, respectivamente. A direção de núcleo cabia a Nilton Travesso, que também nos dirigiu, ao lado de Del, Henrique Martins e Antonino Seabra.

A lista em cena se estendia para Joana Fomm, Luís Carlos Arutim, Jofre Soares, Cláudio Fontana, Cláudia Mello, Ana Lúcia Torre, Valéria Alencar (ainda antes de ser Vitti), e tantos outros, como Eduardo Galvão, uma das vítimas fatais da Covid no Brasil.

A recusa se Elizangela em se vacinar contra o coronavírus a tirou da última novela de Glória Perez, “Travessia”, que teria sido o seu último trabalho na TV. Convidada para a trama da autora que lhe dera destaque em “A Força do Querer”, como mãe de Bibi Perigosa (Juliana Paes), ela foi eliminada das pretensões da emissora por não apresentar o comprovante de vacinação, uma das precauções da empresa para reduzir as oportunidades de contaminação do vírus.

Pena sair de cena com essa triste lembrança. Quase metade do país defendeu Bolsonaro nas urnas há um ano, mas poucos representantes da classe artística, setor que o ex-presidente massacrou, ousaram endossar seu projeto contra a cultura.

É praxe ler e ouvir relatos edificantes quando alguém morre, e boa parte dos obituários sofre de amnésias sobre os pecados de seu protagonista. Mas as menções de representantes da classe artística a Elizangela foram econômicas, quase nulas.

As exceções que pude encontrar foram Juliana Paes, que resgatou uma sequência preciosa com ela em “A Força do Querer”, via Instagram, e Eduardo Moscovis, que mencionou a importância do apoio e da palavra dela em momento crucial.

A despeito de sua desastrosa opção (a)política, Elizangela fez a diferença em enredos como “Senhora do Destino” (2003, de Aguinaldo Silva), novela de maior audiência deste milênio, onde atendia por Djenane e Edileusa. Dividiu segredos com Nazaré (Renata Sorrah), que costumava matar pessoas apenas com um empurrão na escadaria de casa.

Também circulou como peça-chave dos mistérios e divergências que corriam entre Donatela (Cláudia Raia) e Silveirinha (Ary Fontoura) na memorável “A Favorita” (2008, de João Emanuel Carneiro).

Em “Pedra Sobre Pedra” (1992, também de Aguinaldo Silva), era Rosemery, uma das mulheres que se assanhavam a ingerir um Antúrio, a flor que trazia Jorge Tadeu (Fábio Jr.), já morto, de volta ao plano terrestre para um sexo casual, ao som de Fagner e Joana. Inesquecível.

Daí que prefiro me lembrar da Elizangela pela ficção mesmo, ainda mais guardando na memória nossa boa convivência nos idos de “Pupilas”, mas também as tantas vezes em que ela me fez congelar diante da tela. Ainda em 2017, conversamos por telefone para falar sobre Aurora, a brava mãe de Bibi Perigosa (Juliana Paes) em “A Força do Querer”, como pode ser lido aqui.

Não é possível ignorar o lamentável cartaz encenado nesses últimos anos na vida real, tampouco me cabe julgar o que a levou a encampar tal discurso, às vezes paradoxal. Ao mesmo tempo em que louvava a Deus e Nossa Senhora em sua página no Instagram, exaltava também São Jorge/Ogum com vídeo de Maria Bethânia e Zeca Pagodinho cantando em sua homenagem.

Só me resta lamentar que a voz antivacina-bolsonarista tenha reduzido a relevância de sua obra aos olhos de ex-colegas e de parte do público.

 

 

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Cristina Padiglione

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