Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Obrigada, Silvio Santos, pelas honrosas pegadinhas que me pregaste

Uma selfie do nosso último encontro, em junho de 2022

Já contei aqui e nas rádios do grupo Estado, mais de uma vez, o episódio que me marcou para a vida toda em início de carreira, quando perdi a raríssima oportunidade de entrevistar Silvio Santos – ou ao menos de garantir algumas aspas do homem.

Deu-se num jantar na casa da Hebe Camargo, ocasião onde eu era a única repórter presente, e Silvio conversava tranquilamente com Jô Soares em um canto da sala. Hebinha celebrava então a vinda da atriz e cantora mexicana Verônica Castro ao Brasil. Na época, fazia sucesso no SBT uma novela estrelada por ela, de título “Rosa Selvagem”. Eu, sem querer atrapalhar a conversa entre dois gigantes da TV, gente que jamais poderia ser tratada com trivialidade por qualquer pessoa, e menos ainda por uma repóter ainda verdinha, aguardei o momento certo para abordar seu Silvio.

Mas todos naquela sala sofriam do mesmo acanhamento que eu, e mal o Jô se afastou, veio outro alguém para beijar-lhe a mão,e mais outro, e mais outro. A determinada altura da noite, todos descemos para o andar de baixo da casa, onde seria servido o jantar, e obedeci a orientação de seguir o fluxo, como manda a boa educação em casa alheia. Mas o Silvio não desceu. “Cadê o Silvio?”, perguntei a Nair Bello. “O Silvio foi embora”, ela riu. “Silvio é como Cinderela: deu meia-noite, ele se recolhe”, gargalhou Hebe.

Nem preciso dizer que fui esculachada na redação da então Folha da Tarde, onde eu trabalhava, no dia seguinte. E isso se deu em alto e bom tom, que naquele tempo ninguém se apegava ao que hoje chamamos de “assédio moral”. Eu mereci o pito, mas talvez não daquela forma.

Passei a vida jurando que recuperaria a chance de entrevistar Silvio Santos, mas já havia desistido disso há alguns anos, após participar de várias edições do Troféu Imprensa – e até de um Jogo das Três Pistas – sem que ele não me permitisse trocar com ele mais que meia-dúzia de palavras fora do ar. Nas breves visitas que fazia ao camarim dos jurados antes do programa, mostrava-se sempre muito gentil, e eu aproveitava para perguntar uma ou outra coisa da qual se falava nessas ocasiões. Saía de lá com umas preciosas aspas dele.

Mas entrevista mesmo, jamais.

Eu poderia ter me plantado na porta do Jassa para tentar algo mais? Poderia. Outros fizeram e obtiveram uma conversa com ele, invariavelmente divertida. Mas não o fiz porque também nunca tive a chance de largar todo o restante do meu trabalho para investir nesse propósito.

O que eu não sabia é que Silvio me pregaria pegadinhas até na hora de partir. Há coisa de três semanas, recebi de dois veículos a encomenda de um obituário digno da obra do patrão, e aceitei as duas missões, sob viéses distintos, claro. Mas sem acreditar que ele morreria um dia, fui adiando a realização das tarefas e, por mais que a internação demorada fosse um alerta sobre alguém de 93 anos, fui surpreendida por sua morte no momento mais impróprio possível: estava a caminho de Santos, onde meu marido, Marcelo Godoy, tinha uma tarde de autógrafos agendada em uma simpática livraria do bairro do Gonzaga para o lançamento de seu mais novo livro – um sucesso, aliás -, “Cachorros”.

Não levei computador nem entreguei os textos. Perdi os dois trabalhos. E antes que cause espanto o fato de obituários serem produzidos antes da morte de alguém, vamos esclarecer que quanto maior é a obra de quem vai partir, mais zeloso é o planejamento prévio para honrar sua despedida. Só os grandes merecem ter obituários prontos em vida, e Silvio era gigante.

Este texto, publicado só agora, após o sepultamento de Senor Abravanel, não foi, no entanto, produzido com antecedência nem tem o propósito de disputar cliques com tantos outros produzidos sobre a obra de Silvio – alguns de minha própria autoria, na Folha de S. Paulo e no UOL. É só um depoimento singelo sobre os momentos em que pudemos estar juntos.

Mas eu deveria ter suposto que ele partiria num sábado. Sempre digo que as divas e os nomes mais nobres do showbiz morrem aos sábados, de preferência tumultuando o plantão de jornalistas e o fechamento antecipado das edições dos jornais impressos de domingo. Assim foi com Hebe, Marília Pêra e José Wilker, só para citar alguns.

SILVIO SANTOS DESDE DOMINGO NO PARQUE

Não cresci numa casa que cultuava Silvio Santos, ao contrário. “Não suporto a voz desse homem”, dizia minha mãe quando eu cismava de assistir ao Domingo no Parque. Nascida em 1970, eu adorava a prova do Foguete e amava ver as competições em que crianças rodavam com as mãos aquelas bolas gigantes rumo a traves minúsculas para o gol.

Desde que eu era aborrecente gostava de ver o Troféu Imprensa para saber quais personalidades e programas seriam os melhores do ano. Como todo telespectador, contestava ou endossava os resultados do meu posto, diretamente do sofá. Mal sabia eu, e realmente isso nunca foi um propósito de vida, que por tantas vezes eu estaria naquele júri para dar pessoalmente, e com voto útil, as minhas opiniões.

Quando lá estive pela Folha da Tarde, ainda em 1994, ele não facilitou pra mim. “Você está nervosa, Cristina Padiglione?”, perguntou ele, diante da minha primeira resposta, provavelmente com voz trêmula. Nada é pior para quem se mostra inseguro diante das câmeras do que alguém lhe perguntando isso, “está nervosa?” O comentário dele me desastabilizou por completo, mas na segunda resposta, ele voltou à carga: “Agora já parece mais calma”. Pânico.

Demorei a entender que não devia me levar tão a sério, mas aquelas participações no Troféu eram rigorosamente cobradas por candidatos e público, e as pessoas levavam, sim, aquilo tudo muito ao pé da letra.

Dias após a exibição do Troféu, fui abordada pelo Nilton Travesso, então diretor de Teledramaturgia do SBT, para me sondar sobre uma participação na próxima novela da casa. Disse ele que o Luciano [Callegari], então superintendente artístico do SBT, e o próprio Silvio acharam que eu “fotografava muito bem”, como se diz quando a câmera gosta do seu foco. Eu reagi: “Mas eu sou jornalista. Por que não me botam num jornal?”, ri. Mas o Travesso soube que eu vinha fazendo curso de interpretação com a Myriam Muniz, e arriscou: “Você não tá fazendo curso de atriz?” Sim, respondi, mas é sobre Nelson Rodrigues, talvez eu tenha mais pretensão de escrever roteiro do que de atuar, ponderei.

Resumo da ópera: acabei participando de “As Pupilas do Sr. Reitor”, do primeiro ao último capítulo, numa função próxima à de elenco de apoio, mas muito digna. Isso me levou a frequentar mais o SBT do que todas as outras emissoras que visitei ao longo de 33 anos cobrindo televisão. E, sim, o SBT fazia jus, pelo menos no meu tempo, à “TV mais feliz do Brasil“. Digo que enquanto os funcionários chamavam o dono da Globo de “doutor” e o da Manchete e da Band de “Seu”, lembrando ainda do “bispo”, no caso da Record, no SBT tratavam o patrão apenas pelo primeiro nome, um indício de proximidade inegável com seus empregados.

Além das muitas vezes em que estive no Troféu e de participar com a Joyce Pascowitch de uma disputa divertidíssima no Jogo das Três Pistas – quando Silvio perguntou à plateia se eu era “colunista” ou “comunista”, divertindo-se com a semelhança entre as duas palavras – estive com ele também em uma situação delicada. Ainda nos idos da FT, fui cobrir uma audiência de separação entre ele e Iris Abravanel, no Fórum de Santo Amaro.

Naturalmente, não pudemos entrar, mas demos plantão – longo plantão – na porta do Fórum, e conversamos, eu e vários colegas, com Silvio e Iris na porta do local. Ficamos quase na rua, assistindo ao trânsito de ônibus da avenida Santo Amaro, em um quintalzinho entre a calçada e o edifício onde acontecia a reunião. Ao final da audiência, Iris Abravanel saiu consternada, de rosto fechado, calada: “Não posso falar nada”, limitou-se a dizer.

Embora o pedido de divórcio tivesse partido dela, ele saiu do prédio pouco depois, com aquele largo sorriso no rosto, agradecendo a presença da imprensa e dizendo apenas o seguinte: “Eu sei que ela vai voltar pra mim porque eu amo ela”. Pronto. Estava feita a frase de primeira página de todos os jornais no dia seguinte – e na época eram bem mais jornais que hoje: “Eu amo ela”. Assim mesmo, sem aquele [sic] que acusa erros gramaticais. Quem ousaria fazer isso com uma declaração de amor?

Poucos dias depois, o casal celebraria a reconciliação em um show do Gipsy Kings – “Djoby, Djobá, cada dia que te quiero más…”, com direito a fotos publicadas em primeira mão pelo extinto Diário Popular. O Brasil celebrou a volta do casal e a gente, que cobria televisão naqueles tempos pré-internet, trabalhava enquanto se divertia. Eu queria ser um verme no camarote do extinto Olympia, na Lapa, para ver seu Silvio reconquistando Iris ao som dos ciganos.

(Repare que ele tinha uma conexão com giganos: dizia que não dava entrevistas porque uma cigana lhe confidenciou que, a partir do momento que o fizesse, poderia contar 24 horas de vida e partir. A justificativa fazia parte do comportamento sarcástico, já que ele deu várias entrevistas ao longo de seus 93 anos – mas não para mim. E tudo bem, eu me dou por feliz com todo esse enredo.)

Outro episódio que me conecta à história de SS veio em 2001, quando, logo após a libertação da filha Patrícia de um sequestro, o empresário foi feito refém dentro da própria casa, no Morumbi, pelo sequestrador Fernando Dutra Pinto. O caso protagonizou com folga todos os noticiários do dia. Eu tinha um exame de curva glicêmica a fazer naquela manhã, em função da gravidez de minha primeira filha, Emanuela, e deveria passar por isso com um(a) acompanhante. Meu marido, pai da criança, naturalmente foi convocado para tanto.

Ele então me deixou no térro do edifício onde ficava o laboratório e foi resolver alguma coisa antes de estacionar o carro. Já a postos, fui induzida ao procedimento de ingerir aqueles copos de glicose para medir os níveis resutlantes no sangue. E Marcelo nada de chegar. A gente vai ficando meio grogue, daí a necessidade de contar com alguém por perto. Mas os minutos passavam, a glicose avançava no organismo, e nada do acompanhante.

Prostada diante de uma TV, deitada em uma cadeira confortável daquelas em que a gente se estica quando é medicado em pronto-socorro, eu assistia à Globo, que interrompeu a programação normal para relatar a invasão do sequestrador à casa do “empresário Silvio Santos”, como narrava Carlos Nascimento.

Um batalhão de fotógrafos e repórteres se aglomerava à porta da cena do crime, diante da residência, e não demorou para que eu localizasse em meio a muvuca o próprio pai da Manu. Antes que pudesse chegar ao laboratório, ele recebeu uma ligação do Estadão e lá ele foi cobrir o episódio, mil vezes mais emocionante que um exame de curva glicêmica.

Anos mais tarde, tomei outro olé do seu Silvio, por ocasião do caso da fraude contábil constatada no Banco Panamericano. Estava no Estadão, e a chefia me chamou para dizer que eu era a pessoa mais próxima dele naquela redação. “Então vocês estão em maus lençóis”, respondi. “Ele nunca falou comigo mais que meia-dúzida de palavras fora do ar”.

Uma vez até falou, enquanto eu acompanhava uma reportagem pós-Troféu Imprensa para a revista Caras. Eu me fiz de tiete e fiquei acompanhando as fotos dele ao lado de suas cultuadas esculturas de cêra no mezanino do SBT, mas ele logo percebeu: “Você tá querendo me entrevistar, né? Mas eu não dou entrevista”, reagiu, depois de responder evasivamente a algumas perguntas minhas.

Mas no caso do banco, como eu faria? Consegui um telefone da casa dele. Liguei. Alguém com inconfundível voz de Silvio Santos atendeu. “Alô, Silvio?”
“Não, aqui é o Ednaldo”, ele respondeu.
“Ednaldo? Você tem a voz do Silvio”, disse eu.
“Todo mundo diz isso, deve ser a convivência”, ele reagiu.

Insisti, ri, mas não adiantou. Deixei recado. Disse quem eu era e o quanto era relevante que ele pudesse se manifestar sobre o caso, mas é claro que minha empreitada acabou ali. E ele, sarcástico, certamente desligou o telefone às gargalhadas.

Dias depois, ele deu uma entrevista à Mônica Bergamo na Folha, o que a assessoria do SBT tratou como uma “brincadeira” dele, uma zoeira qualquer. Ele até pedia a ela que colocasse uma foto “bem bonita” dele na matéria. Eu disse à Maísa Alves, a assessora: “Mas por favor, eu quero que ele me esculache, não tem problema, mas que ele fale com a gente. Não precisa ser comigo, pode ser qualquer pessoa do Estadão”. Não houve acordo.

Foi então que tivemos a ideia de enviar uma repórter ao Programa Silvio Santos por meio das caravanas que iam ao SBT. Alline Dauroiz criou um enredo para se meter no meio das colegas de trabalho e até fotografou o animador distribuindo suas cédulas de dinheiro em forma de aviãozinho. Não era uma ou outra nota de R$ 50 ou R$ 100 que tapariam o rombo gerado pelo Panamericano, mas ver o dono da instituição distribuindo dinheiro como quem brinca de forca, naquele momento, era uma imagem e tanto.

Imagem das cédulas distribuídas à plateia na edição comemorativa dos 60 anos do Programa Silvio Santos, em 2023/ Foto: Cristina Padiglione

Ano passado, estivemos na plateia do programa para celebrar os 60 anos da atração, então comandada pela Patrícia Abravanel, com a presença de dona Iris e das irmãs de Patrícia na plateia. Lá estavam também o Roque e o Liminha, e tantos outros que emolduravam a imagem de Silvio na TV. Nunca tive a percepção de uma ausência tão presente.

É impressionante como o DNA dele domina todo o cenário da televisão que, àquela altura, já não era comandada nem estrelada por ele.

 

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Cristina Padiglione

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