‘Vale Tudo’: Gilberto Braga chegou a crer na mudança do país, mas voltou atrás 30 anos depois

Diante da estreia do remake de “Vale Tudo”, programada para a noite desta segunda-feira, 31 de março, mais do que questionar quem matará Odete Roitman, agora vivida por Débora Bloch, vale aguardar para ver se o empresário corrupto, papel de Alexandre Nero, vai novamente fugir do país e dar uma banana para o Brasil, do alto de seu jatinho particular, como aconteceu em 1988. Ou será que ele será algemado a bordo, como se deu 20 anos depois, em outra novela do mesmo Gilberto Braga?
Em 1988, Reginaldo Faria, intérprete do tipo, saía ileso do país, enquanto seu assessor era preso.
Em 2008, Herson Capri teria sua fuga frustrada ao final de “Insensato Coração”, em cena claramente inspirada no desfecho de seu par de “Vale Tudo”.

Herson Capri, Horácio Cortez em ‘Insensato Coração’, algemado logo após imitar Marco Aurélio, 20 anos depois de ‘Vale Tudo’
Gilberto Braga (1945-2021) diria em 2008 que “o Brasil mudou e não aceita mais impunidade”.
Nas duas décadas que separam os dois episódios, convém considerar que “Vale Tudo” espelhava um Brasil esperançoso pelo fim da ditadura e a perspectiva de devolver ao povo o voto direto para a escolha do presidente da Repúbica, mas ainda era uma autêntica república de bananas. Parêntese: A propósito, para quem crê que coincidências não existem, é bem sintomático que a releitura da novela esteja estreando justamente num 31 de março, aniversário do golpe de Estado de 1964.
Em 2008, tendo o país já derrubado um presidente da República e assistido à civilidade de dois presidentes passando a faixa a outro – Itamar Franco a Fernando Henrique e Fernando Henrique a Lula -, Gilberto acreditava de fato que o país havia mudado.
Mas em 2018, quando o canal Viva decidiu reprisar “Vale Tudo” pela segunda vez, tendo já experimentado em 2010 o potencial de engajamento da novela na rede mais anti-sociável – e olhe que o Twitter ainda iria piorar com a mudança de nome -, Braga concluiu a esta escriba, com certa melancolia, que “o Brasil não mudou nada em 30 anos, por isso a novela continua atual”.
Conversamos brevemente por telefone, quando lhe procurei para saber por que “Vale Tudo” ainda despertava tamanho envolvimento do público. Seria um enredo atemporal, tratando das questões de moralidade?
Quando lhe questionei como ele escreveria, então em 2018, o final de Marco Aurélio, ele me disse que repetiria a fuga no jatinho, com a banana gesticulada pelos braços que se cruzam na perpendicular com punhos cerrados. Tentei ainda argumentar sobre Mensalão e Lava-Jato, mas ele foi irredutível. “Marco Aurélio, hoje, sairia livre de novo”, cravou.
O enredo de “Vale Tudo” nasceu do mote, levantado por Gilberto, se vale a pena ser honesto no Brasil, e foi criado e desenvolvido por ele, ao lado de Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, sob direção de Dennis Carvalho.
Ao entrevistar a autora do remake, Manuela Dias, ao lado de Filpe Pavão, para o UOL, levei essa lembrança a ela e quis saber como ela via o país hoje nesse quesito de punição: mudou ou não mudou? A dramaturga reconheceu que vivemos “esse pêndulo histórico”. Apesar disso, acredita que o Brasil não é o mesmo de 37 anos atrás, tendo encontrado algumas saídas e outros impasses. “Acho que os mesmos problemas hoje têm encontrado novas soluções e também novos empecilhos”, definiu.
A BANANA DE MARCO AURÉLIO, um clássico
A cena de Reginaldo Faria seria replicada e alterada por Herson Capri, como cá lembramos, em 2008, em “Insensato Coração”, e também por Vera Holtz em “A Lei do Amor”, de Maria Adelaide Amaral, em 2017, quando a persoangem foge também num jatinho. Não ousou cruzar os braços, mas os mais atentos puderam ver estampado na janela da aeronave o nome “Banana Airlines”.

Vera Holtz no final de ‘A Lei do Amor’: jatinho da Banana Airlines
E como a vida imita a arte, não foram poucas as menções ao mesmo Marco Aurélio quando Jair Bolsonaro embarcou para os Estados Unidos na véspera do fim de seu mandato na presidência da República, mas não no próprio jato, e sim no avião da FAB, a Força Aérea Brasileira. Na ocasião, não faltaram memes reproduzindo a situação ao som de “Brasil”, música de Cazuza, na voz de Gal Costa, que volta à abertura no remake, com seu insuperável potencial para o enredo.
MÚSICA FOI ALVO DE PRESSÃO NA ÉPOCA
A trilha sonora de “Vale Tudo” é explêndida, mas Gilberto, sempre muito franco, me confirmou o que o ótimo livro “Teletema” (Dash Editora, 2014), de Guilherme Bryan e Vincent Villari, já havia documentado: o autor odiava algumas escolhas da playlist do folhetim.
A abertura, no entanto, sugestão sua, foi gravada por Gal Costa especialmente para a novela. “Essa abertura foi uma audácia do Boni [chefão da Globo na época]”, relatou Gilberto no livro. “Foi tenso, houve pressão do departamento comercial para tirar, por causa do verso ‘o meu cartão de crédito é uma navalha’. Estava começando a fazer a história e, quando vi a Gal num show cantando ‘Brasil’, fiquei arrepiado, porque tinha tudo a ver”, concluiu.
Outra queridinha sua era “Isto Aqui o que É”, samba composto por Ary Barroso para o carnaval de 1942. Bryan e Villari contam no livro que a canção foi sugestão do próprio autor, que pediu a Caetano Veloso que o gravasse para a novela, no que foi prontamente atendido. Raquel, a heroína vivida por Regina Duarte em 1988 e agora repaginada por Taís Araújo, foi “desenhada a partir desse tema”, relata o livro.
Gilberto, no entanto, detestava o tema da Maria de Fátima de Glória Pires (“Pense e Dance”, do Barão Vermelho). Argumentava que a música era “menor que a personagem”.
Até as vésperas da estreia, a Globo tentava negociar a inclusão de outro hit de enorme sucesso na versão original, também de Cazuza: “Faz Parte do Meu Show”, tema de Solange, vivida por Lídia Brondi há 37 anos e agora por Alice Wegmann.
Que venha “Vale Tudo”, a releitura, com todas as chances que a novela oferece de a gente revisitar conceitos, valores e repertórios.